Luís Fernando
Veríssimo
Esta ideia para um conto de terror é
tão terrível que, logo depois de tê-la, me arrependi. Mas já estava tida, não
adiantava mais. Você, leitor, no entanto, tem uma escolha. Pode parar aqui, e
se poupar, ou ler até o fim e provavelmente nunca mais dormir. Vejo que decidiu
continuar. Muito bem, vamos em frente. Talvez , posta no papel, a ideia perca um
pouco do seu poder de susto. Mas não posso garantir nada. É assim:
Um casal de velhos mora sozinho numa
casa. Já criaram os filhos, os netos já estão grandes, só lhes resta implicar
um com o outro. Retomam com novo fervor uma discussão antiga. Ela diz que ele
ronca quando dorme, ele diz que é mentira.
– Ronca.
– Não ronco.
– Ele diz que não ronca – comenta
ela, impaciente, como se falasse com uma terceira pessoa.
Mas não existe outra pessoa na casa.
Os filhos raramente visitam. Os netos, nunca. A empregada vem de manhã, faz o
almoço, deixa o jantar e sai cedo.
Ficam os dois sozinhos.
– Eu devia gravar os seus roncos, pra
você se convencer – diz ela. E em seguida tem a ideia infeliz. – É o que eu vou
fazer! Esta noite, quando você dormir, vou ligar o gravador e gravar os seus
roncos.
– Humrfm –
diz o velho.
Você, leitor, já deve estar sentindo
o que vai acontecer. Pare de ler, leitor. Eu não posso parar de escrever. Às
ideias não podem ser desperdiçadas, mesmo que nos custem amigos, a vida ou o
sono. Imagine se Shakespeare tivesse se horrorizado com suas próprias ideias e
deixado de escrevê-las, por puro comedimento. Não que eu queira me comparar a
Shakespeare. Shakespeare era bem mais magro. Tenho que exercer este ofício,
esta danação. Você, no entanto, não é obrigado a me acompanhar, leitor. Vá
passear, vá tomar um sol. Uma das maneiras de controlar a demência solta no
mundo e deixar os escritores falando sozinhos, exercendo sozinhos a sua
profissão malsã, o seu vício solitário. Você ainda está lendo. Você é pior do
que eu, leitor. Você tinha escolha.
Sozinhos. Os velhos sozinhos na casa.
Os dois vão para a cama. Quando o velho dorme, a velha liga o gravador. Mas em
poucos minutos a velha também dorme. O gravador fica ligado, gravando. Pouco
depois a fita acaba.
Na manhã seguinte, certa do seu triunfo, a
velha roda a fita. Ouvem-se alguns minutos de silêncio. Depois, alguém
roncando.
– Rarrá! –
diz a velha, feliz.
Pouco depois se
ouve o ronco de outra pessoa, a velha também ronca!
– Rarrá! –
diz o velho, vingativo.
E em seguida, por cima do contraponto
de roncos, ouve-se um sussurro. Uma voz sussurrando, leitor. Uma voz
indefinida. Pode ser de homem, de mulher ou de criança. A princípio – por causa
dos roncos – não se distingue o que ela diz. Mas aos poucos as palavras vão
ficando claras. São duas vozes.
É um diálogo
sussurrado.
“Estão
prontos?”
“Não, acho
que ainda não...”
“Então vamos
voltar amanhã...”
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