Quintana e
Galeano compartilharam, em épocas diferentes, a mesma fantasia.
Mario Quintana, em seu Sapato Florido , publicado em livro em 1948
(Editora Globo), conta a fábula do homem que, com pena do peixinho que pescara,
“retirou cuidadosamente o anzol e pincelou com iodo a garganta do coitadinho”.
Depois, levou-o para casa “no bolso traseiro das calças”. Tornaram-se amigos
inseparáveis. “Aonde o homem ia, o peixinho o acompanhava, a trote que nem um
cachorrinho”, descreve o poeta. Com o passar do tempo, o pescador achou que não
tinha o direito de guardar aquele pequeno animal consigo. Certo dia – resumindo
a história –, passeando à margem do rio, mesmo chorando, atirou o peixinho na
água. “E a água fez um redemoinho, que foi depois serenando, serenando… até que
o peixinho morreu afogado…”.
Mais de 40 anos depois, o jornalista
e escritor uruguaio Eduardo Galeano (falecido no ano passado), em O
Livro dos Abraços
(tradução L&PM, 1991), conta o causo do pequeno bagre que decidiu sair de
um arroio e seguir o peão Mellado Iturria. Os dois se tornaram amigos
inseparáveis. “Desde o amanhecer o bagre o acompanhava para ordenhar e
percorrer o campo. Ao cair da tarde, tomavam chimarrão juntos; e o bagre
escutava suas confidências”, relata o autor. Até que, “numa certa manhã de
muito calor, quando as lagartixas andavam de sombrinha e o bagrezinho se
abanava furiosamente com as barbatanas”, Mellado teve a ideia fatal: – Vamos tomar
banho no arroio – propôs. “Foram os dois. E o bagre se afogou.”
(Do Almanaque Gaúcho
de Zero Hora)
Continua...
Velha História
Era uma vez um homem que estava
pescando, Maria. Até que apanhou um peixinho! Mas o peixinho era tão
pequenininho e inocente, e tinha um azulado tão indescritível nas escamas, que
o homem ficou com pena. E retirou cuidadosamente o anzol e pincelou com iodo a
garganta do coitadinho. Depois guardou-o no bolso traseiro das calças, para que
o animalzinho sarasse no quente. E desde então, ficaram inseparáveis. Aonde o
homem ia, o peixinho o acompanhava, a trote, que nem um cachorrinho. Pelas
calçadas. Pelos elevadores. Pelo café. Como era tocante vê-los no
"17"! o homem, grave, de preto, com uma das mãos segurando a xícara
de fumegante moca, com a outra lendo o jornal, com a outra fumando, com a outra
cuidando do peixinho, enquanto este, silencioso e levemente melancólico, tomava
laranjada por um canudinho especial...
Ora, um dia o homem e o peixinho
passeavam à margem do rio onde o segundo dos dois fora pescado. E eis que os
olhos do primeiro se encheram de lágrimas. E disse o homem ao peixinho:
“Não, não me assiste o direito de te
guardar comigo. Por que roubar-te por mais tempo ao carinho do teu pai, da tua
mãe, dos teus irmãozinhos, da tua tia solteira? Não, não e não! Volta para o
seio da tua família. E viva eu cá na terra sempre triste!...”
Dito isso, verteu copioso pranto e,
desviando o rosto, atirou o peixinho n’água. E a água fez redemoinho, que foi
depois serenando, serenando... até que o peixinho morreu afogado...
*****
Causos/1
Eduardo Galeano
Nas fogueiras de Paysandu, Mellado
Iturria conta causos. Conta acontecidos. Os acontecidos aconteceram alguma vez,
ou quase aconteceram, ou não aconteceram nunca, mas têm uma coisa de bom:
acontecem cada vez que são contados.
Este é o
triste causo do bagrezinho do arroio Negro.
Tinha bigodes de arame farpado, era
vesgo e de olhos saltados. Nunca Mellado tinha visto um peixe tão feio. O bagre
vinha grudado em seus calcanhares desde a beira do arroio, e Mellado não
conseguia espantá-lo. Quando chegou no casario, com o bagre feito sombra, já
tinha se resignado.
Com o tempo, foi sentindo carinho
pelo peixe. Mellado nunca tinha tido um amigo sem pernas. Desde o amanhecer o
bagre o acompanhava para ordenhar e percorrer campo. Ao cair da tarde, tomavam
chimarrão juntos; e o bagre escutava suas confidencias.
Os cachorros, enciumados, olhavam o
bagre com rancor; a cozinheira, com más intenções. Mellado pensou em dar um
nome para o peixe, para ter como chamá-lo e para fazer-se respeitar, mas não
conhecia nenhum nome de peixe, e batizá-lo de Sinforoso ou Hermenegildo poderia
desagradar a Deus.
Estava sempre de olho nele. O bagre
tinha uma notória tendência às diabruras. Aproveitava qualquer descuido e ia
espantar as galinhas ou provocar os cachorros:
–
Comporte-se – dizia Mellado ao bagre.
Certa manhã de muito calor, quando as
lagartixas andavam de sombrinha e o bagrezinho se abanava furiosamente com as
barbatanas, Mellado teve a ideia fatal:
– Vamos
tomar banho no arrolo – propôs. Foram, os dois.
E o bagre se
afogou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário