sexta-feira, 13 de novembro de 2015

No ar, o Repórter Esso



O mais famoso noticiário de todos os tempos, o Repórter Esso, estreou no rádio no dia 28 de agosto de 1941. Foi o primeiro noticiário de radiojornalismo do Brasil, comandado pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Patrocinado pela empresa norte-americana sediada no Brasil, Standard Oil Company of Brazil, o Repórter Esso se especializou em divulgar, principalmente, notícias sobre a evolução das guerras travadas pelos Estados Unidos em todo o mundo.

O locutor


O locutor Heron Domingues apresentou o programa durante 18 anos. Os slogans “Repórter Esso, o testemunha ocular da história” e “Repórter Esso, o primeiro a dar as últimas” ficaram famosos em sua voz.

O Repórter Esso e o suicídio de Getúlio

A temperatura política do país estava elevada e prometia subir ainda mais.

Desde o atentado da rua Toneleros, em que um oficial da Aeronáutica morrera e o jornalista Carlos Lacerda, líder da oposição ao governo, levara um tiro no pé, o presidente Getúlio Vargas estava praticamente imobilizado no Catete. Os jornais, com exceção apenas da Última Hora, não mais escolhiam palavras para atacá-lo.

“Somos um povo honesto governado por ladrões” - estampou A Tribuna da Imprensa, dando a dimensão da profunda crise de autoridade em que o Brasil estava submerso.

 Nos quartéis, a oposição e o zunzum contra o governo cresciam: não havia dia em que os boatos não falavam de tanques (do Exército) nas ruas e aviões (da Aeronáutica) nos céus, prontos para o ataque final e a deposição do presidente. Na Câmara e no Senado, os parlamentares se sucediam na tribuna, batendo na mesma tecla: Getúlio Vargas, para o bem da nação, tinha de renunciar. Nas ruas, bares e lares, a classe média estava escandalizada com as notícias sobre bandalheiras na administração pública. O golpe estava delineado. Uma questão de dias, dizia-sena cidade.

Na Rádio Nacional - mais especificamente, na redação de radiojornalismo da emissora -, Heron Domingues não se cansava de repetir aos seus companheiros de trabalho: a crise estava próxima do estado de ebulição. Não sabia como ela evoluiria, muito menos seria capaz de arriscar um palpite sobre o seu desfecho. Mas o seu faro jornalístico não o enganava: algo grave estava prestes a acontecer. Por isso, todos ali na redação tinham de permanecer atentos, de olhos bem abertos. “Não podemos”, dizia, “ser surpreendidos ou atropelados pelos acontecimentos”.

Por isso, ele mesmo, Heron Domingues (solteiro, na época), resolveu mudar-se para a redação. Mandara vir uma cama de campanha, improvisara travesseiros e providenciara um enxoval estratégico: duas mudas de roupa, escova, pasta de dentes, cigarros e uma garrafa de conhaque, que o ajudaria a suportar a longa espera e o frio da madrugada. Às vezes, deitava-se com o receptor ligado ao ouvido, utilizando jornais como cobertor.

Naqueles dias da crise de agosto de 1954, Heron elaborou uma escala, de modo que pelo menos dois auxiliares seus estivessem permanentemente com ele. Durante a última reunião que fizera com sua equipe, alguém usara apalavra exagero para descrever as providencias que ele havia tomado. Heron limitara-se a sorrir: “Pois vamos pecar pelo exagero.” Dias antes, Heron conversara com o diretor-geral da emissora, Victor Costa, e este, que mantinha uma linha direta com o Catete, não escondera quanto estava preocupado com os rumos possíveis da crise: “É, seu Heron, a coisa pode estourar a qualquer momento.” O locutor achou melhor não perguntar ao chefe o que ele chamava de a coisa.

A coisa seria ou a renúncia de Getúlio (falava-se também em licença) ou a sua deposição. A primeira hipótese, admitiu o locutor, estava agora mesmo sendo discutida na reunião de ministros que Getúlio convocara para aquela madrugada. A segunda hipótese dependeria da primeira: há dias, ou semanas, vinha circulando a informação de que forças militares estariam prestes a realizar um ataque armado contra o Catete. Caso Getúlio não renunciasse, o golpe militar seria inevitável, concluiu Heron.

O telefone toca, despertando Heron de seus pensamentos. Atende e ouve com atenção a informação que lhe chega. Desliga e imediatamente escreve o texto que lerá ao microfone. Eram 5 horas da manhã.

Amigo ouvinte, aqui fala o Repórter Esso, testemunha ocular da História, em edição extraordinária.

E atenção, atenção, ouvintes do Repórter Esso:

O Palácio do Catete acaba de informar oficialmente que o senhor Getúlio Vargas deixará o governo. Todos os ministros de Estado encontram-se reunidos no Palácio presidencial e a informação oficial é de que o presidente da República vai se licenciar por tempo indeterminado. O vice-presidente, Café Filho, assumirá o governo.

O noticiário lido por Heron Domingues praticamente despertou a cidade e instalou uma espécie de frenesi na Rádio Nacional. Os telefones não paravam um só instante: ouvintes ou mesmo gente da casa queriam detalhes, muitos se diziam surpresos, outros pareciam felizes, muitos se sentiam tristes e acabrunhados.

Heron, contudo, estava com a pulga atrás da orelha. Chamou dois ou três companheiros de trabalho e segredou-lhes o que sentia: algo lhe dizia que a crise ainda teria desdobramentos. “Vamos permanecer atentos”, recomendou. Sentia-se cansado, mas preferiu esperar pelo Repórter Esso das 8 horas, quando repetiu a notícia sobre o pedido de licença do presidente Getúlio Vargas. Ao voltar à redação, ligou para Victor Costa, no Palácio, e recebeu a informação de que tudo estava calmo: o presidente estava nos seus aposentos, dormindo. Eram 8h10min.

Heron resolveu, então, descansar. Pediu a Leomy Mesquita que assumisse o comando da cobertura. Súbito, alguém gritou o seu nome:

- Heron! Depressa! É o Victor Costa! Parece que aconteceu alguma coisa! O locutor apressou-se a atender:

- Que foi, Victor? Que foi?

- Heron! Aconteceu uma tragédia! No curto silêncio que se seguiu, Heron supôs ouvir um soluço do outro lado da linha. Gritou:

- Victor, o que houve? O que houve?

- Uma tragédia, uma tragédia, Heron! O presidente se matou! Neste minuto!

- Você tem certeza? Você viu? Posso irradiar? Isso é uma catástrofe.

- Transmita! Agora! Transmita para que o Brasil todo saiba! Heron ainda queria detalhes:

- Mas se matou como?

- Com um tiro no peito. Benjamin desceu as escadas gritando: Getúlio morreu! Getúlio matou-se!

O que se seguiu foi contado pelo próprio Heron Domingues anos mais tarde:

“Pulei sobre a mesa e, esquecido de que deveria primeiro dar a notícia ao país, corri, alucinadamente, pelo corretor extenso, até a sala onde estavam reunidos meus companheiros de diretoria da Rádio Nacional. Abri a porta e gritei: 'Ouçam a tragédia!' Não sei se chorava. Tinha nas mãos a maior notícia de minha vida profissional.

Nem o fim da Segunda Guerra Mundial me emocionara tanto. Liguei os dispositivos automáticos de interrupção da programação e comecei num cantochão esbaforido e entrecortado:

- Atenção! Aqui fala o Repórter Esso em edição extraordinária!
Acaba de suicidar-se, em seus aposentos, no Palácio do Catete, o presidente Getúlio Vargas!

 Heron Domingues repetiu inúmeras vezes a notícia, sempre com muita emoção. Aos poucos, informações novas chegavam do Palácio, permitindo que o Repórter Esso transmitisse a seguinte edição extraordinária:

- Amigo ouvinte! Aqui fala o Repórter Esso, testemunha ocular da história, em edição extraordinária.

Conhecem-se agora mais alguns pormenores da morte do senhor Getúlio Vargas, que se suicidou esta manhã, às 8 horas e 26 minutos, em seus aposentos, no Catete, com um tiro no coração.

Depois da dramática reunião, nesta madrugada, com o ministério e numerosas outras autoridades, o senhor Getúlio Vargas retirou-se aos seus aposentos, com a fórmula já assentada de que entraria em licença do governo espontaneamente até que se apurassem cabalmente as responsabilidades relativas ao crime da rua Toneleros. Uma vez provada sua nenhuma culpa, retornaria ao poder. Eram então 3 horas e 30 minutos.

Antes de retirar-se, recebeu abraços dos que se encontravam na sala. Já em seus aposentos, o senhor Getúlio Vargas mandou chamar o senhor João Goulart. Este, antes de atender, chamou a um canto o senhor Hugo Faria, ministro do Trabalho, com o qual conferenciou à meia-voz, acenando o titular do Trabalho com a cabeça, dizendo que sim.

Enquanto isso, os jardins do Catete estavam transformados em verdadeira praça de guerra desde as primeiras horas de ontem. As tropas do Exército eram reforçadas e colocadas em pontos estratégicos, enquanto os próprios civis eram recrutados para a defesa, incluindo as mulheres. Notava-se por todos os lados certo frisson, semelhante a uma angústia indefinível.

Por volta das 9 horas e 15 minutos, um enviado de Victor Costa entrou na redação de radiojornalismo e entregou a Heron Domingues um envelope. O locutor leu o bilhete que lhe enviara o diretor-geral da emissora: “Heron, aí está a carta que o presidente escreveu antes de se matar. É um documento dramático! Leia-o! O Brasil precisa conhecê-lo! Heron examinou o texto e logo percebeu a sua importância. Chamou o prefixo do Repórter Esso:

- Amigo ouvinte do Repórter Esso! Atenção! Muita atenção!

Antes de se matar, o presidente Getúlio Vargas escreveu uma mensagem à nação. Atenção ao seu conteúdo:

“Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se novamente e se desencadeiam sobre mim.

Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam e não me dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar.

Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se às dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a Justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas por meio da Petrobras; mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionaria que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder. Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este meio de estar sempre ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e por vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram, respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue terá o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia, não abateram o meu ânimo.

 Eu vos dei a minha vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.”

Tomado pela emoção, as lágrimas correndo pelo seu rosto cansado e insone, Heron Domingues quase não pôde completar a leitura da carta-testamento. Na Rádio Nacional, um silêncio feito de tristeza e vazio dominava a todos. Em todo o país, carente de lideranças políticas que conduzissem a sua revolta, o povo saiu às ruas, depredando jornais antigetulistas e bancos e firmas americanas. A carta-testamento funcionara como uma espécie de senha. Contudo, em meio ao pranto, à revolta e à dor, a reação popular provia-se em lamentações e quebra-quebras inconseqüentes. Mas isso é outra história.




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