O mais famoso noticiário de todos
os tempos, o Repórter Esso, estreou no rádio no dia 28 de agosto de 1941. Foi o
primeiro noticiário de radiojornalismo do Brasil, comandado pela Rádio Nacional
do Rio de Janeiro. Patrocinado pela empresa norte-americana sediada no Brasil,
Standard Oil Company of Brazil, o Repórter Esso se especializou em divulgar,
principalmente, notícias sobre a evolução das guerras travadas pelos Estados
Unidos em todo o mundo.
O locutor
O locutor Heron Domingues apresentou o
programa durante 18 anos. Os slogans “Repórter Esso, o testemunha ocular da
história” e “Repórter Esso, o primeiro a dar as últimas” ficaram famosos em sua
voz.
O Repórter Esso e o suicídio de Getúlio
A
temperatura política do país estava elevada e prometia subir ainda mais.
Desde o atentado da rua Toneleros, em
que um oficial da Aeronáutica morrera e o jornalista Carlos Lacerda, líder da oposição
ao governo, levara um tiro no pé, o presidente Getúlio Vargas estava
praticamente imobilizado no Catete. Os jornais, com exceção apenas da Última
Hora, não mais escolhiam palavras para atacá-lo.
“Somos um povo honesto governado por
ladrões” -
estampou A Tribuna da Imprensa, dando a dimensão da profunda crise de
autoridade em que o Brasil estava submerso.
Nos quartéis, a oposição e o zunzum
contra o governo cresciam: não havia dia em que os boatos não falavam de
tanques (do Exército) nas ruas e aviões (da Aeronáutica) nos céus, prontos para
o ataque final e a deposição do presidente. Na Câmara e no Senado, os
parlamentares se sucediam na tribuna, batendo na mesma tecla: Getúlio Vargas,
para o bem da nação, tinha de renunciar. Nas ruas, bares e lares, a classe
média estava escandalizada com as notícias sobre bandalheiras na administração
pública. O golpe estava delineado. Uma questão de dias, dizia-sena cidade.
Na Rádio Nacional - mais
especificamente, na redação de radiojornalismo da emissora -,
Heron Domingues não se cansava de repetir aos seus companheiros de trabalho: a
crise estava próxima do estado de ebulição. Não sabia como ela evoluiria, muito
menos seria capaz de arriscar um palpite sobre o seu desfecho. Mas o seu faro
jornalístico não o enganava: algo grave estava prestes a acontecer. Por isso,
todos ali na redação tinham de permanecer atentos, de olhos bem abertos. “Não
podemos”, dizia, “ser surpreendidos ou atropelados pelos acontecimentos”.
Por isso, ele mesmo, Heron Domingues (solteiro,
na época), resolveu mudar-se para a redação. Mandara vir uma cama de campanha,
improvisara travesseiros e providenciara um enxoval estratégico: duas mudas de
roupa, escova, pasta de dentes, cigarros e uma garrafa de conhaque, que o
ajudaria a suportar a longa espera e o frio da madrugada. Às vezes, deitava-se
com o receptor ligado ao ouvido, utilizando jornais como cobertor.
Naqueles dias da crise de agosto de
1954, Heron elaborou uma escala, de modo que pelo menos dois auxiliares seus
estivessem permanentemente com ele. Durante a última reunião que fizera com sua
equipe, alguém usara apalavra exagero para descrever as providencias que ele
havia tomado. Heron limitara-se a sorrir: “Pois vamos pecar pelo exagero.” Dias
antes, Heron conversara com o diretor-geral da emissora, Victor Costa, e este,
que mantinha uma linha direta com o Catete, não escondera quanto estava
preocupado com os rumos possíveis da crise: “É, seu Heron, a coisa pode
estourar a qualquer momento.” O locutor achou melhor não perguntar ao chefe o
que ele chamava de a coisa.
A coisa seria ou a renúncia de
Getúlio (falava-se também em licença) ou a sua deposição. A primeira hipótese,
admitiu o locutor, estava agora mesmo sendo discutida na reunião de ministros
que Getúlio convocara para aquela madrugada. A segunda hipótese dependeria da
primeira: há dias, ou semanas, vinha circulando a informação de que forças
militares estariam prestes a realizar um ataque armado contra o Catete. Caso Getúlio
não renunciasse, o golpe militar seria inevitável, concluiu Heron.
O telefone toca, despertando Heron de
seus pensamentos. Atende e ouve com atenção a informação que lhe chega. Desliga
e imediatamente escreve o texto que lerá ao microfone. Eram 5 horas da manhã.
Amigo ouvinte, aqui fala o Repórter
Esso, testemunha ocular da História, em edição extraordinária.
E atenção,
atenção, ouvintes do Repórter Esso:
O Palácio do Catete acaba de informar
oficialmente que o senhor Getúlio Vargas deixará o governo. Todos os ministros
de Estado encontram-se reunidos no Palácio presidencial e a informação oficial
é de que o presidente da República vai se licenciar por tempo indeterminado. O
vice-presidente, Café Filho, assumirá o governo.
O noticiário lido por Heron Domingues
praticamente despertou a cidade e instalou uma espécie de frenesi na Rádio
Nacional. Os telefones não paravam um só instante: ouvintes ou mesmo gente da
casa queriam detalhes, muitos se diziam surpresos, outros pareciam felizes,
muitos se sentiam tristes e acabrunhados.
Heron, contudo, estava com a pulga
atrás da orelha. Chamou dois ou três companheiros de trabalho e segredou-lhes o
que sentia: algo lhe dizia que a crise ainda teria desdobramentos. “Vamos
permanecer atentos”, recomendou. Sentia-se cansado, mas preferiu esperar pelo
Repórter Esso das 8 horas, quando repetiu a notícia sobre o pedido de licença
do presidente Getúlio Vargas. Ao voltar à redação, ligou para Victor Costa, no
Palácio, e recebeu a informação de que tudo estava calmo: o presidente estava
nos seus aposentos, dormindo. Eram 8h10min.
Heron resolveu, então, descansar.
Pediu a Leomy Mesquita que assumisse o comando da cobertura. Súbito, alguém
gritou o seu nome:
- Heron! Depressa! É o
Victor Costa! Parece que aconteceu alguma coisa! O locutor apressou-se a
atender:
- Que
foi, Victor? Que foi?
- Heron! Aconteceu uma
tragédia! No curto silêncio que se seguiu, Heron supôs ouvir um soluço do outro
lado da linha. Gritou:
- Victor,
o que houve? O que houve?
- Uma
tragédia, uma tragédia, Heron! O presidente se matou! Neste minuto!
- Você
tem certeza? Você viu? Posso irradiar? Isso é uma catástrofe.
- Transmita!
Agora! Transmita para que o Brasil todo saiba! Heron ainda queria detalhes:
- Mas
se matou como?
- Com um tiro no peito. Benjamin
desceu as escadas gritando: Getúlio morreu! Getúlio matou-se!
O que se
seguiu foi contado pelo próprio Heron Domingues anos mais tarde:
“Pulei sobre a mesa e, esquecido de
que deveria primeiro dar a notícia ao país, corri, alucinadamente, pelo
corretor extenso, até a sala onde estavam reunidos meus companheiros de
diretoria da Rádio Nacional. Abri a porta e gritei: 'Ouçam a tragédia!' Não sei
se chorava. Tinha nas mãos a maior notícia de minha vida profissional.
Nem o fim da Segunda Guerra Mundial
me emocionara tanto. Liguei os dispositivos automáticos de interrupção da
programação e comecei num cantochão esbaforido e entrecortado:
- Atenção! Aqui fala o
Repórter Esso em edição extraordinária!
Acaba de suicidar-se, em seus aposentos, no Palácio do Catete, o presidente
Getúlio Vargas!
Heron Domingues repetiu inúmeras
vezes a notícia, sempre com muita emoção. Aos poucos, informações novas
chegavam do Palácio, permitindo que o Repórter Esso transmitisse a seguinte
edição extraordinária:
- Amigo ouvinte! Aqui fala
o Repórter Esso, testemunha ocular da história, em edição extraordinária.
Conhecem-se agora mais alguns
pormenores da morte do senhor Getúlio Vargas, que se suicidou esta manhã, às 8
horas e 26 minutos, em seus aposentos, no Catete, com um tiro no coração.
Depois da dramática reunião, nesta madrugada,
com o ministério e numerosas outras autoridades, o senhor Getúlio Vargas
retirou-se aos seus aposentos, com a fórmula já assentada de que entraria em
licença do governo espontaneamente até que se apurassem cabalmente as
responsabilidades relativas ao crime da rua Toneleros. Uma vez provada sua
nenhuma culpa, retornaria ao poder. Eram então 3 horas e 30 minutos.
Antes de retirar-se, recebeu abraços
dos que se encontravam na sala. Já em seus aposentos, o senhor Getúlio Vargas
mandou chamar o senhor João Goulart. Este, antes de atender, chamou a um canto
o senhor Hugo Faria, ministro do Trabalho, com o qual conferenciou à meia-voz,
acenando o titular do Trabalho com a cabeça, dizendo que sim.
Enquanto isso, os jardins do Catete
estavam transformados em verdadeira praça de guerra desde as primeiras horas de
ontem. As tropas do Exército eram reforçadas e colocadas em pontos
estratégicos, enquanto os próprios civis eram recrutados para a defesa, incluindo
as mulheres. Notava-se por todos os lados certo frisson, semelhante a uma
angústia indefinível.
Por volta das 9 horas e 15 minutos,
um enviado de Victor Costa entrou na redação de radiojornalismo e entregou a
Heron Domingues um envelope. O locutor leu o bilhete que lhe enviara o diretor-geral
da emissora: “Heron, aí está a carta que o presidente escreveu antes de se
matar. É um documento dramático! Leia-o! O Brasil precisa conhecê-lo! Heron
examinou o texto e logo percebeu a sua importância. Chamou o prefixo do
Repórter Esso:
- Amigo
ouvinte do Repórter Esso! Atenção! Muita atenção!
Antes de se matar, o presidente
Getúlio Vargas escreveu uma mensagem à nação. Atenção ao seu conteúdo:
“Mais uma vez, as
forças e os interesses contra o povo coordenaram-se novamente e se desencadeiam
sobre mim.
Não me acusam,
insultam; não me combatem, caluniam e não me dão o direito de defesa. Precisam
sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a
defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o
destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos
econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci.
Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive
de renunciar.
Voltei ao governo nos
braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se às
dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei
de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a Justiça da revisão
do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização
das nossas riquezas por meio da Petrobras; mal começa esta a funcionar, a onda
de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não
querem que o trabalhador seja livre. Não querem que o povo seja independente. Assumi
o Governo dentro da espiral inflacionaria que destruía os valores do trabalho.
Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações
de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de100
milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso produto.
Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa
economia, a ponto de sermos obrigados a ceder. Tenho lutado mês a mês, dia a
dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo
suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender
o povo que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar a não ser meu
sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar
sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida. Escolho este
meio de estar sempre ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis
em vosso peito a energia para a luta por vós e por vossos filhos. Quando vos vilipendiarem,
sentireis no meu pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá
unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será
uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência.
Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram, respondo com
a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas
esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício
ficará para sempre em sua alma e meu sangue terá o preço do seu resgate. Lutei
contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado
de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia, não abateram o meu ânimo.
Eu vos dei a minha
vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente dou o primeiro
passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.”
Tomado pela emoção, as lágrimas
correndo pelo seu rosto cansado e insone, Heron Domingues quase não pôde completar a leitura da carta-testamento. Na
Rádio Nacional, um silêncio feito de tristeza e vazio dominava a todos. Em todo
o país, carente de lideranças políticas que conduzissem a sua revolta, o povo
saiu às ruas, depredando jornais antigetulistas e bancos e firmas americanas. A
carta-testamento funcionara como uma espécie de senha. Contudo, em meio ao
pranto, à revolta e à dor, a reação popular provia-se em lamentações e
quebra-quebras inconseqüentes. Mas isso é outra história.
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