segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Uma menina



Jose Clemente Pozenato*

É um domingo de sol brilhante de primavera. Mas o inverno não se desfez de todo. O vento que varre as nuvens e algumas folhas secas pela calçada é ainda frio. Apesar disso, o ar das pessoas, ou por causa do sol, ou do domingo, ou de ambos, é quase de festa. Encosto o carro no meio-fio e, quando abro a porta, dou com um par de olhos grandes e castanhos, tão claros como a manhã. É uma menina, tem casaquinho de malha cor-de-rosa e calça um tênis sovado. Penso que deve ter uns sete anos, mas podem ser apenas cinco ou seis, ou também nove ou dez.

As meninas pobres nunca mostram a idade.  Tanto podem ter mais anos do que aparentam, porque as agruras da vida as envelhecem de modo precoce, como ter menos, porque talvez não tenham comido o bastante para crescer. Mas essa menina tem pele lisa, as bochechas coradas, deve ter a idade que mostra, uns oito anos de infância querida, que os anos não trazem mais. Ela me pede um troco para comprar comida, num tom de voz que custo a definir. Não é tom choroso do pedinte, que quer parecer sofrido como realmente é. Nem o tom exigente e duro dos revoltados com a vida. Fala sem nenhuma teatralidade, daquela pequena teatralidade que a vida ensina a usar, mesmo nos íntimos momentos da dor ou do amor. Fala, pois, com inocência, a mesma dos olhos. Digo a ela que não tenho troco, como de fato não tenho.

Vou até o bar, digo ainda, e na saída terei algum dinheiro miúdo para dar. A menina sorri, Não parece ter ficado desiludida com não ter ganho nada, nem mostra a descrença de quem imagina estar sendo enganado. Sorri, apenas, tem todos os dentes ainda, e com certeza também as esperanças. Entro no bar e, na roda de amigos, bebo alguma coisa, converso, mas uma pressa me pede para sair. Digo que tenho compromisso e saio para a rua. A menina não está ali me esperando e fico um pouco decepcionado. Ela não acreditou na minha promessa, ela já não confia em promessas, penso desiludido.

Ando na direção do carro e então vejo, no fim da quadra, o casaquinho cor-de-rosa saltando de cá para lá. É ela, a menina, brincando com um cachorro. Caminho até lá e paro a alguns metros da cena. Há ali uma mulher também olhando, com duas crianças ainda menores que a minha menina, e mais uma no colo. Deve ser a mãe. Espero que a menina perceba a minha presença, mas não. Brincar com o cachorro é tudo o que ela quer agora. Se tem fome, esqueceu a fome. Ou a mãe já resolveu esse problema.

Dou-me conta de que estou sendo um pouco ridículo, ali parado, porque um homem passa por mim, olha-me, olha a menina com o cão, e faz um sorriso que não descubro se é de complacência ou de descaso. Resolvo me afastar. Ando alguns passos, mas não resisto a olhar para trás. A menina agora me vê. Vai vir ao meu encontro, penso reconfortado, cobrar a promessa que lhe fiz. Mas ela apenas abana, com um gesto rápido, e torna a pular com o cachorro.

Eu sou menos importante que o cachorro, qualquer coisa que eu tenha é menos importante. O cão, também encontrado na rua, deve ter dado a ela uma atenção maior que a minha. Ergo a mão, que a menina não chega a perceber, e vou embora. Talvez nunca mais torne a ver, e vou ficar com mais essa promessa a cumprir. Vou ficar com mais esse encontro que não chegou a ser encontro. Como tantos outros encontros frágeis, às vezes não maiores que uma troca de olhar, mas que ficam enterrados no solo da alma, latejando, querendo vir cá fora, à luz brilhante do sol.


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P.S. O presente conto é inédito e foi inserido no Caderno de Literatura da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul - AJURIS


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