Uma saudade distante e perdida me invade
bem por essa época de enchentes, durante esses aguaceiros de primavera, quando
a chuvarada chega, se instala e não tem pressa de ir embora. Permanece lá fora
e aqui dentro, pelos internos da alma. Fico a admirar os pingos grossos que
batem desatinados no vidro da janela e descem a fazer desenhos desconexos. Lá
longe estão os morros, uns pedaços de verde, um pouco de mato nativo. Também
estou como esta geografia, aos pedaços, deslocado, que juntando todos desenha
um homem cicatrizado de lembranças e descaminhos. Já faz tanto tempo que me
mudei, mas só o corpo está aqui, a alma parece continuar lá, bem longe, ainda
dentro do peito do guri de calças curtas, de bombachinha arremangada, correndo
atrás dos terneiros, juntando lenha para o fogão, fazendo gravetos para a mãe
principiar o fogo. O menino que adorava cortar carqueja nova, preparar uma
vassoura de lei e varrer o pátio a capricho.
Ah, depois que a chuva passar, vou
enxergar o horizonte todo e recordar das lindas manhãs de outubro, da claridade
anilada do meu pago e sonharei com novas manhãs. Daqui não consigo mais ver
aqueles sábados encantados, as luzes e as alegrias daquele tempo, quando
pensava que tudo seria daquele jeito para sempre. Tinha meu cavalo Tostado,
tinha meu cachorro Cacique, tinha o pequeno campo que para mim era uma
imensidão, tinha as sangas, os caponetes, a passarada, as vacas de leite,
minhas bolitas, meus livros de poesia, minha bola de couro costurada com tentos
e ainda havia os olhos azuis da Belinha para eu neles me perder e me apaixonar.
Caramba, agora com as vistas encharcadas, vejo o pai sentado em sua cadeira,
mateando, fazendo planos que nunca se realizavam, feliz em seu atavismo bárbaro
e campeiro. Sinto um cerro na garganta quando enxergo a mãe quieta, em seu
mutismo de mulher pampeana, desolada, olhando o filho partir para sempre,
enxugando o choro em seu velho e encardido avental de pano.
Depois da chuva, quando as ruas
secarem e o sol primaveril der as caras novamente por essas bandas, vou cevar
um mate novo e arrastar este corpo cansado para a margem do grande rio. E de lá
vou criar asas imaginárias e voarei por sobre tantas matarias, por tantos
banhadais, vou cruzar montanhas e canhadas e como as aves de arribação vou
pousar na querida terra colorada da minha Vila Rica. Com a manga da camisa foi
secar as lágrimas e então serei de novo aquele guri que nunca deveria ter
deixado de ser. Eu juro. Depois que a chuva passar…
Do livro “Campereada”
de Paulo Mendes
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