sábado, 12 de setembro de 2015

Sobre o nome de Porto Alegre

Juremir Machado da Silva


Chegada dos açorianos por Xico Carlos

Conta a lenda que José Marcelino de Figueiredo teria decidido chamar nossa Porto dos Casais de Porto Alegre num dia em que estava muito triste, morto de saudade da terrinha, o seu Portugal amado de onde tinha saído meio na corrida, graças a uma mãozinha do poder e à pressão, por outro lado, dos que queriam acertar algumas contas com ele. Não se pode eliminar facilmente a soma de deliciosos enganos e desencontros que ajudaram a construir a nossa sólida e “mui” valorosa e leal identidade.

Ao que consta, Figueiredo, como bom português, era um saudosista, um nostálgico, que, se tocasse algum instrumento, teria, quem sabe, inventado o fado, salvo se, contaminado pelas relações com os espanhóis e com a cultura do Prata, tivesse antecipado o tango. O gajo gostava de sonhar com “fatos do seu passado”, conforme a objetiva expressão do historiador Walter Spalding (1967, p. 55). Lembrava-se de Portalagre, localidade do Alto Alentejo, de origem romana, cantada em prosa e verso, ao que parece topograficamente semelhante a Porto Alegre.

O mais relevante ponto em comum entre Portalegre e Porto Alegre era o gosto por entreveros com espanhóis. No final do século XVIII, Portalegre vivia de matar espanhóis abusados em intermináveis guerras de fronteiras. Conhecemos esse filme. Spalding chega a citar uma expressão que se tornaria decisiva em nossa cultura. Segundo ele, Portalegre era “um marco de defesa”, uma “espécie de ‘tranqueira de Portugal’ na fronteira alentejana” (1967, p. 56). Tudo se associa: de tanto combater espanhóis, herdamos de Portalegre o nome meio estropiado e gosto pelos ferrolhos (tranqueira). Deve ser daí que vem, cientificamente, o nosso estilo de jogar futebol baseado na retranca e no gosto por massacrar uruguaios e argentinos a botinadas. Nada como a pesquisa histórica para alcançar a origem das coisas! A astróloga Zora Yonara, que durante muitos anos profetizou nas telas gaúchas, pronunciava Portalegre, em lugar de Porto Alegre, para escárnio geral. Não estava completamente errada. Talvez, em outra encarnação, tivesse sido também corrida de Portugal.

O certo é que José Marcelo de Figueiredo, que não era de Portalegre, mas a admirava e amava, resolveu batizar nossa Porto dos Casais, de onde também não era, mas pela qual também se apaixonou, de Porto Alegre. Marcelino era como um amante que chama a próxima amada pelo nome da ex. Assim, no bom estilo da dor de cotovelo, Porto Alegre já nasceu de uma saudade e de uma vontade de provocar os hermanos que nos cercavam (e cercam) por todos os lados. Assim como o Guaíba é um lago chamado de rio, embora não passe de um estuário, O Rio Grande é uma “ilha”, mesmo que se finja de continente. Vivemos de (des)enganos.

No capítulo das controvérsias de historiadores sobre quem foi o verdadeiro fundador de Porto Alegre, matéria por demais árida para ser tratada aqui, pode-se com certeza afirmar que José Marcelino de Figueiredo não foi José Marcelino de Figueiredo. Mas Manoel Jorge Gomes de Sepúlveda, nascido em Trás-os-Montes. Portanto, Porto Alegre foi batizada por um pseudônimo. A história é simples. o capitão Sepúlveda, nobre (um mauricinho da época) matou um oficial inglês que teria insultado Portugal e seu reino. Bom patriota e bom súdito, Sepúlveda apagou o oponente. Segundo as más línguas, o motivo era outro: um rabo de saia, o mais universal e intemporal motivo para um acerto de contas. Talvez o único realmente importante.

As fortes relações econômicas e políticas entre Portugal e Inglaterra exigiam a punição do assassino. Mas Portugal não queria perder um bom filho da elite nem brigar com a Inglaterra. As razões econômicas, as mesmas que nos fazem, hoje, bajular o FMI, levaram os portugueses a propor uma saída. Mandaram Sepúlveda para o Brasil com o nome de José Marcelino de Figueiredo e uma promoção, o posto de coronel. Estava inventado o jeitinho. Com isso, Porto Alegre tornou-se Porto Alegre e capital da Capitania de São Pedro pelas mãos de um assassino e foragido, mas sob proteção das nações e das autoridades que deveriam persegui-lo e condená-lo. O caso de José Marcelino de Figueiredo inaugurou um estilo que seria a nossa marca: quando dá não para punir, promova. Figueiredo era bom homem que virou general e, conforme Spalding, morreu “serenamente”, em Lisboa. Com saudades de Porto Alegre.

Os açorianos que vieram povoar Porto Alegre não fizeram jus ao nome do arquipélago de onde partiram por causa do excesso populacional: Açores, proveniente de “açor”, ave de rapina, da família dos falcões, que, em grande quantidade, viviam e predavam na região. Ao contrário, foram colonizadores de boa índole e de muito trabalho. É bem verdade que os “açores” podiam ser domesticados e eram úteis na caça. Aqui, os açorianos foram boas presas para a agricultura. Continuaram prolíficos. Já os bandeirantes, que desceram para estas bandas, até podiam ser chamados de aves de rapina. Contudo, Jerônimo de Ornelas, por alguns considerado o “fundador” de Porto Alegre, embora fosse um “açor”, era descendente, segundo Spalding, “da melhor gente da Ilha da Madeira” (1967, p. 23). Podia ter sido, por isso, com seus parceiros de Laguna, um bom Capitão de Mato.

Ornelas, de resto, incomodado pela chegada dos casais açorianos, que se intrometeram em seu porto (Porto do Dornelles ou Porto de Viamão), vendeu as suas terras e, nesse sentido, derrotado foi viver em Triunfo. Na realidade, Ornelas enfrentou a primeira reforma agrária do Rio Grande e não gostou. Teve suas terras desapropriadas para a instalação, justamente, dos casais açorianos. Vale lembrar que o Arquipélago dos Açores recebeu muita gente do Alentejo. Talvez por isso José Marcelino de Figueiredo tenha se dado melhor em Porto Alegre.

Sérgio da Costa Franco (1988, p. 295) assegura que Ornelas nada teve a ver com a fundação de Porto Alegre, embora seja impossível falar das origens da capital gaúcha sem citá-lo. No recuo estratégico, ele fundou o povo de Bom Jesus do Triunfo. Como se vê, Porto Alegre é o fruto de uma trama espontânea bem mais contraditória do que percebem os nossos bons positivistas. O acaso é sempre mais divertido do que a coerência a posteriori da História. Ao menos, aos olhos de um cronista sem compromisso com a verdade histórica. Porém, sem obrigação de cometer ficção.


Antiga Catedral

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