domingo, 20 de setembro de 2015

Morte no agreste

Cyro dos Anjos


O primeiro indício de que o estado de José Custódio se tornara realmente grave foi haver a família providenciado para que viesse da cidade uma garrafa de vinho do Porto e uma lata de marmelada.

Na roça, só se dá vinho e marmelada ao doente que está passando mal, de verdade.

É uma espécie de compensação: o coitado vai morrer, que leve alguma coisa dos prazeres deste mundo.

Há os manhosos, que requisitam o doce e a bebida, aos primeiros rebates da doença. Mas a estes a família vai entretendo com chazinhos e mezinhas. A um pequeno sitiante das barrancas do Rio Pacuí não se pode conceder o luxo de tal despesa senão em circunstâncias muito especiais: morte ou casamento.

Espalhada a notícia de que José Custódio tinha tido uma derrota do coração, os moradores das redondezas começaram a vir, pela boca da noite, para se informar da marcha do acontecimento, e oferecer seus préstimos à Siá Luzia, companheira do velho.

Eleutério do Capão Redondo chega à porta do quartinho escuro, onde o moribundo arqueja em cima de um jirau, e pergunta:

– Como passou o compadre, Siá Luzia?

– O coitadinho vai rompendo, mas não sei se aguentará varar esta noite – responde a velha, indicando o doente com o queixo.

O destroço humano abre molemente os olhos. Teria ouvido os prognósticos de Siá Luzia? O demônio da velha queria enterrá-lo depressa demais. Não vê que não irá assim! Não era daquela nação de gente perrengue. Viera do sertão do Gorutuba, onde um homem não entrega a rapadura sem mais nem menos.

E continua rompendo. Varou aquela noite, contra expectativa da velha Luzia, que estava cansada de lidar com ele, e contra o desejo íntimo dos compadres que já prelibavam a cachaçada do velório e o transporte do corpo para o comercinho de Rebentão da Vereda, onde terá de ser enterrado.

O acompanhamento de um defunto é fato social extremamente excitante, naqueles agrestes do Pacuí. A gente se diverte de verdade. De vez em quando, o cortejo para, para as rezas e a garrafa de cachaça corre de mão em mão. Contam-se casos. Entabolam-se negócios.

Se o corpo do morto começa a pesar muito, é por causa dos pecados. Então, pendura-se a rede, a jeito, à margem da estrada, e dá-se uma surra de varas no defunto. Só assim se aliviará a pobre alma dos pecados. Naturalmente, a sova fará também que o peso do falecido diminua um pouco, pela perda do elemento líquido – mas este não é o fim imediato, assegura-nos Eleutério.

Voltando ao caso do José Custódio, a demora em se resolver a situação começou a cacetear francamente a família e os compadres. Chamou-se a defunteira Eulália, infalível na conta dos termos e com a longa prática de assistir a cristãos nas vascas da morte.

Pois Eulália falhou. Viu José Custódio fazer o primeiro termo, e depois o segundo. Quando devia entrar no terceiro termo, o velho tornou a aprumar. Era um homem dos diabos.

Siá Luzia achou, então, que só o entendido Sebastião Furriel poderia solucionar aquele caso. E mandaram buscá-lo no Comercinho.

Chegado que foi, Sebastião Furriel entrou logo em conferência com Eulália, que informa:

– Siô Sebastião, vancê sabe que, até o dia de hoje, nunca errei na conta dos termos. Mas este cristão não quer mesmo se finar.

– Vamos ver, cidadão, disse Sebastião, em tom grave.

Acercou-se ato contínuo do moribundo, observou-lhe as unhas dos pés, examinou a fruta dos olhos, tomou o pulso e concluiu:

– O coitado está é sem força para morrer. Vou empregar os meios.

Dito isto, subiu no jirau, firmou o joelho no peito do velho, pondo nele todo seu peso do corpo.

Não foi preciso manobrar outra vez, José Custódio expirara.

Lembro-me, particularmente, de uma das muitas ocasiões em que encontrei José Custódio. Foi no consultório de um médico, em Santana do Rio Verde.

José Custódio levara Siá Luzia para uma consulta. Apontando para aquela mulherzinha pequena, magra, encarquilhada, dissera:

– Doutor, deste caquinho de gente, que vancê está vendo, já arranquei dezesseis filhos!

Foi esse caquinho que, depois de ter os dezesseis filhos e de vê-los morrer quase todos, ainda enterrou meu amigo José Custódio.

Quando as comadres e os compadres lhe diziam diante do morto espichado no jirau:

 – Sinto muito os seus incômodos, comadre Luzia.

– É a vontade de Deus, que é que nós há de fazer – respondia. Ele não nasceu para semente.

Nenhuma lágrima nos olhinhos miúdos. Aliás, seria uma extravagância, nos agreste de Pacuí

(Almanaque do Correio do Povo de 1959)

Cyro dos Anjos

(1906 – 1994)


Ciro Versiani dos Anjos (Montes Claros, 5 de outubro de 1906 – Rio de Janeiro, 4 de agosto de 1994) foi jornalista, professor, advogado, cronista, romancista, ensaísta, memorialista brasileiro e membro da Academia Brasileira de Letras.



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