Por Paulo santana
Mais que a
todos, a passagem dos séculos me assombra.
Tem gente por aí convivendo comigo
que já nasceu sob o signo da insegurança pública e do desemprego.
Eu não, sou do tempo das cadeiras
preguiçosas ou de palha nas calçadas.
Do tempo em que o trem vinha até
a Voluntários da Pátria e se ia até Santa Maria num vagão com restaurante.
Sou do tempo da Bandeira do Divino,
ela era precedida nas ruas e nos becos por foguetes, entrava nas casas,
punha-se um donativo numa caneca e cortava-se um pedacinho de fita da bandeira
para abençoar a casa.
Sou do tempo do Armazém Rio-grandense,
sou do tempo dos cubeiros, que vinham em caminhões com cubos limpos de madeira
envernizada e os trocavam nas latrinas por cubos cheios de fezes humanas.
E as mães diziam para os filhos: “Se
não te comportares e não estudares, vais ser cubeiro”.
Sou do tempo das Lojas Krahe, da Casa
Coates e da carrrocinha dos cachorros, que recolhia os cães vadios, mas junto
com eles arrastava por laços asfixiantes nos pescoços os cães das famílias, o
que por vezes causava uma tal revolta no arrabalde que as carroças eram
destroçadas, os cães soltos e os funcionários municipais espancados.
Sou do tempo da Casa das Sedas, da
Xangrilá e da espiriteira de álcool e do fogareiro de bomba.
Sou do tempo da Sloper, da Tschiedel,
do caminhão do gelo que trazia longas barras que eram carregadas nos ombros dos
geleiros, protegidos por sacos de aniagem.
Não havia refrigeradores, eram geladeiras,
nasceu neste processo a cerveja bem gelada.
Sou do tempo do Anil Reckitt, do
Vinho Doce Sabiá e do emplastro poroso do mesmo nome para torcicolo.
Sou do tempo do Kirk e da Senador, da
Ferragem Pimenta, do pião, do bilboquê, depois do ioiô, do jogo de bambá com
cascas de laranja, do jogo de taco com casinha derrubada, do Mercado Livre das
frutas e verduras na Mauá, da vela espermacete, do refresco Hidrolitrol, do
cartaz no bonde:
“Veja ilustre passageiro
o belo tipo faceiro
que o senhor tem a seu lado
e no entretanto (sic) acredite
quase morreu de bronquite
salvou-o o Rhum Creosotado”.
Sou do tempo do bambolê, do sapato
tressê, da bolinha de inhaque e da “aça” que arrastava todas pela frente.
Sou do tempo
dos cines Coliseu e Central.
Sou do tempo do Brizola governando o
Estado e atrasando o pagamento do funcionalismo por longos e tenebrosos cinco
meses.
Por isso, ao
mesmo tempo que nada me surpreende, tudo me arrasa e espanta.
*Texto publicado em
23/03/2007
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