segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Mais nostalgia



Por Paulo santana

Mais que a todos, a passagem dos séculos me assombra.

Tem gente por aí convivendo comigo que já nasceu sob o signo da insegurança pública e do desemprego.

Eu não, sou do tempo das cadeiras preguiçosas ou de palha nas calçadas.

Do tempo em que o trem vinha até a Voluntários da Pátria e se ia até Santa Maria num vagão com restaurante.

Sou do tempo da Bandeira do Divino, ela era precedida nas ruas e nos becos por foguetes, entrava nas casas, punha-se um donativo numa caneca e cortava-se um pedacinho de fita da bandeira para abençoar a casa.

Sou do tempo do Armazém Rio-grandense, sou do tempo dos cubeiros, que vinham em caminhões com cubos limpos de madeira envernizada e os trocavam nas latrinas por cubos cheios de fezes humanas.

E as mães diziam para os filhos: “Se não te comportares e não estudares, vais ser cubeiro”.

Sou do tempo das Lojas Krahe, da Casa Coates e da carrrocinha dos cachorros, que recolhia os cães vadios, mas junto com eles arrastava por laços asfixiantes nos pescoços os cães das famílias, o que por vezes causava uma tal revolta no arrabalde que as carroças eram destroçadas, os cães soltos e os funcionários municipais espancados.

Sou do tempo da Casa das Sedas, da Xangrilá e da espiriteira de álcool e do fogareiro de bomba.

Sou do tempo da Sloper, da Tschiedel, do caminhão do gelo que trazia longas barras que eram carregadas nos ombros dos geleiros, protegidos por sacos de aniagem.

Não havia refrigeradores, eram geladeiras, nasceu neste processo a cerveja bem gelada.

Sou do tempo do Anil Reckitt, do Vinho Doce Sabiá e do emplastro poroso do mesmo nome para torcicolo.

Sou do tempo do Kirk e da Senador, da Ferragem Pimenta, do pião, do bilboquê, depois do ioiô, do jogo de bambá com cascas de laranja, do jogo de taco com casinha derrubada, do Mercado Livre das frutas e verduras na Mauá, da vela espermacete, do refresco Hidrolitrol, do cartaz no bonde:

          “Veja ilustre passageiro
          o belo tipo faceiro
          que o senhor tem a seu lado
          e no entretanto (sic) acredite
           quase morreu de bronquite
          salvou-o o Rhum Creosotado”.

Sou do tempo do bambolê, do sapato tressê, da bolinha de inhaque e da “aça” que arrastava todas pela frente.

Sou do tempo dos cines Coliseu e Central.

Sou do tempo do Brizola governando o Estado e atrasando o pagamento do funcionalismo por longos e tenebrosos cinco meses.

Por isso, ao mesmo tempo que nada me surpreende, tudo me arrasa e espanta.

*Texto publicado em 23/03/2007


Cine Central na Rua da Praia quase esquina com a Rua da Ladeira


Cine Coliseu - bico de pena de Vicente Correa


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