Apelo
Amanhã faz um mês que a Senhora
está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom
chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma
semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance
no espelho.
Com os dias, Senhora, o leite primeira
vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no
chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor
deserto, até o canário ficou mudo. Não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui
beber com os amigos. Uma hora da noite eles se iam. Ficava só, sem o perdão de
sua presença, última luz na varanda, a todas as aflições do dia.
Sentia falta da pequena briga pelo
sal no tomate — meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas
violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na
camisa. Calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolha? Nenhum de nós sabe,
sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para
casa, Senhora, por favor.
O Negócio
Grande
sorriso do canino de ouro, o velho Abílio propõe às donas que se abastecem de
pão e banana:
- Como
é o negócio?
De cada três dá certo com uma. Ela sorri,
não responde ou é uma promessa a recusa:
- Deus me livre, não! Hoje não...
Abílio
interpelou a velha:
- Como
é o negócio?
Ela concordou e, o que foi melhor, a
filha também aceitou o trato. Com a dona Julietinha foi assim. Ele se
chegou:
- Como
é o negócio?
Ela sorriu, olhinho baixo. Abílio
espreitou o cometa partir. Manhã cedinho saltou a cerca. Sinal combinado, duas
batidas na porta da cozinha. A dona saiu para o quintal, cuidadosa de não
acordar os filhos. Ele trazia a capa de viagem, estendida na grama orvalhada.
O vizinho espionou os dois, aprendeu
o sinal. Decidiu imitar a proeza. No crepúsculo, pum-pum, duas pancadas fortes
na porta. O marido em viagem, mas não era dia do Abílio. Desconfiada, a moça
surgiu à janela e o vizinho repetiu:
- Como
é o negócio?
Diante da
recusa, ele ameaçou:
- Então você quer o velho e não quer o moço? Olhe que eu
conto!
- Espere um pouco - atalhou Julietinha. - Já
volto.
Abriu a
janela, despejou água quente na mão do negro, que fugiu aos pulos.
A moça foi
ao boteco. Referiu tudo ao velho Abílio, mão na cabeça:
-
Barbaridade, ô neguinho safado!
O vizinho não contou e o cometa nada
descobriu. Mas o velho Abílio teve medo. Nunca mais se encontrou com
Julietinha, cada dia mais bonita.
Textos extraídos do livro “Mistérios de Curitiba”,
Editora Record - Rio de Janeiro – 1979, págs. 73 e 103.
Em Busca da Curitiba Perdida
Curitiba, que não tem pinheiros, esta
Curitiba eu viajo. Curitiba, onde o céu azul não é azul, Curitiba que viajo.
Não a Curitiba para inglês ver, Curitiba me viaja. Curitiba cedo chegam as
carrocinhas com as polacas de lenço colorido na cabeça - galiii-nha-óóó-vos - não
é a protofonia do Guarani? Um aluno de avental discursa para a estátua do
Tiradentes.
Viajo Curitiba dos conquistadores de
coco e bengalinha na esquina da Escola Normal; do Jegue, que é o maior pidão e
nada não ganha (a mãe aflita suplica pelo jornal: Não dê dinheiro ao Gigi); com
as filas de ônibus, às seis da tarde, ao crepúsculo você e eu somos dois
rufiões de François Villon. Curitiba, não a da Academia Paranaense de Letras, com
seus trezentos milhões de imortais, mas a dos bailes no 14, que é a Sociedade
Operária Internacional Beneficente O 14 De Janeiro; das meninas de subúrbio
pálidas, pálidas que envelhecem de pé no balcão, mais gostariam de chupar bala
Zequinha e bater palmas ao palhaço Chic-Chic; dos Chás de Engenharia, onde as
donzelas aprendem de tudo, menos a tomar chá; das normalistas de gravatinha que
nos verdes mares bravios são as naus Santa Maria, Pinta e Nina, viajo que me
viaja. Curitiba das ruas de barro com mil e uma janeleiras e seus gatinhos
brancos de fita encarnada no pescoço; da zona da Estação em que à noite um povo
ergue a pedra do túmulo, bebe amor no prostíbulo e se envenena com
dor-de-cotovelo; a Curitiba dos cafetões - com seu rei Candinho - e da sociedade
secreta dos Tulipas Negras eu viajo. Não a do Museu Paranaense com o esqueleto
do Pithecanthropus Erectus, mas do Templo das Musas, com os versos dourados de
Pitágoras, desde o Sócrates II até os Sócrates III, IV e V; do expresso de
Xangai que apita na estação, último trenzinho da Revolução de 30, Curitiba que
me viaja.
Dos bailes familiares de várzea, o
mestre-sala interrompe a marchinha se você dança aconchegado; do pavilhão
Carlos Gomes onde será HOJE! só HOJE! apresentado o maior drama de todos os
tempos - A Ré Misteriosa; dos varredores na madrugada com longas vassouras de
pó que nem os vira-latas da lua.
Curitiba em passinho floreado de
tango que gira nos braços do grande Ney Traple e das pensões familiares de
estudantes, ah! que se incendeie o resto de Curitiba porque uma pensão é maior
que a República de Platão, eu viajo.
Curitiba da briosa bandinha do Tiro
Rio Branco que desfila aos domingos na Rua 15, de volta da Guerra do Paraguai,
esta Curitiba ao som da valsinha Sobre as Ondas do Iapó, do maestro Mossurunga,
eu viajo.
Não viajo todas as Curitibas, a de
Emiliano, onde o pinheiro é uma taça de luz; de Alberto de Oliveira do céu
azulíssimo; a de Romário Martins em que o índio caraíba puro bate a matraca,
barquilhas duas por um tostão; essa Curitiba não é a que viajo. Eu sou da
outra, do relógio na Praça Osório que marca implacável seis horas em ponto; dos
sinos da igreja dos Polacos, lá vem o crepúsculo nas asas de um morcego; do
bebedouro na pracinha da Ordem, onde os cavalos de sonho dos piás vão beber
água.
Viajo Curitiba das conferências
positivistas, eles são onze em Curitiba há treze no mundo inteiro; do tocador
de realejo que não roda a manivela desde que o macaquinho morreu; dos bravos soldados
do fogo que passam chispando no carro vermelho atrás do incêndio que ninguém
não viu, esta Curitiba e a do cachorro-quente com chope duplo no Buraco do Tatu
eu viajo.
Curitiba, aquela do Burro Brabo, um
cidadão misterioso morreu nos braços da Rosicler, quem foi? quem não foi? foi o
reizinho do Sião; da Ponte Preta da estação, a única ponte da cidade, sem rio
por baixo, esta Curitiba viajo.
Curitiba sem pinheiro ou céu azul
pelo que vosmecê é -
província, cárcere, lar - esta Curitiba, e não a outra para inglês ver, com amor
eu viajo, viajo, viajo.
O "Vampiro" fala de sua cidade.
Texto extraído do livro
"Mistérios de Curitiba", Editora Record, Rio de Janeiro,
1979, pág. 84.
"Mistérios de Curitiba", Editora Record, Rio de Janeiro,
1979, pág. 84.
Curitiba é a personagem principal dos contos de Dalton Trevisan
ResponderExcluirverdade! Dalton Trevisan, este sim merecia estar na Academia Brasileira de Letras.
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