quinta-feira, 30 de julho de 2015

O arquivo verde

Maria Goreti*


Era uma simples secretária. Sabia, no entanto, que seu trabalho era útil: trazia todos os papéis necessários ao setor em sua mesa. Seu chefe não localizaria uma nota de venda (ou compra) sem o seu auxílio. 

Até este momento, fora assim. Agora, tinha a impressão de que seria diferente. Sabia, até mesmo, que haveria uma mudança. Hoje era o dia marcado para a chegada do arquivo, por isso mesmo precisava apressar-se. Deveria estar lá para recebê-lo às 7 horas e 30 minutos. Eram 7. Tomou numa só vez o habitual copo de leite, apanhou sua bolsa e jogou-se, numa corrida louca, pela escada do prédio. Ganhou a porta: 7 e 5. Não chegaria a tempo se apanhasse um ônibus. Tomou um táxi. Quinze minutos depois está na firma.

Quando chega no setor, para sua surpresa, seu chefe já havia chegado. Num tom triunfante, exclama:

– Bom dia, doutor Nei. Pontualíssima, não?

– Bom dia, Mada. São 7 e 20, mas...

– Mas...? – repete Mada intrigada. No entanto não foi preciso muito tempo para que descobrisse o significado daquele mas reticenciado. Ocupando uma boa parte da parede, perto de sua mesa, escondido atrás de uma fina camada de poeira, estava ele. O arquivo já chegara. Não podia distinguir sua cor. Parecia-lhe cinza, ou azulado, não era possível identificar com aquela poeira em cima. Sentia algo estranho, algo que suplantava aquele ar empoeirado do arquivo, algo que lhe marcava mais forte a sensação de mudança que sentira ainda em casa. Mas, sendo uma pessoa capaz de adaptar-se a novas situações, refez-se rapidamente.

– Onde está Naná? Já chegou? – pergunta.

– Não, ainda não. Deixa, quando chegar, ela faz a limpezas. Ah! Ei-la. – voltando-se para a mesma – Dona Naná, o arquivo.

– Mais um móvel pra limpar. Eu precisava ganhar mais um braço também. Um bom dia pra vocês.

Naná começa sua limpeza pelo arquivo. Aos poucos a cor verde vai aparecendo. Verde claro, discreto, arrogância suave.

Mada, que ora olhava para o arquivo, pensando nos papéis a serem arquivados, e ora olhava para os papéis e pensava no arquivo, surpreende-se quando percebe que sua cor não é cinza nem azul, mas verde.

– Não combina com as mesas, nem com coisa alguma aqui. – diz.

O arquivo não foi adquirido para decoração, dona Mada, e sim, para pôr-se or-ga-ni-za-ção.

Mada não responde. Num gesto que revela a aprovação das palavras do chefe, começa a separar os papéis. Primeiro pelo nome, depois pelo valor, pela data, etc. É a ordem que chega.

Depois de separados os papéis dentro de cada letra do alfabeto, de cada dia do mês e ano, década valor existente, Mada começa a arquivar. Abre a primeira gaveta: só para os letra A. A segunda: letra B. C para a terceira, D para a quarta. Depois de uma semana termina.

– Mada, João Sebastião, Cr$ 300,00, dia 30 passado.

– Só um instante, doutor Nei.

Dirige-se ao arquivo com os dados fornecidos badalando em sua cabeça: J S, 300, 30. Depois de João Sebastião vieram os antônios, os carlos, os josés e todas as variantes de identificação possíveis.

Mada não se perdia. Achava tudo no arquivo. na quinta gaveta. Na oitava gaveta.

Cada vez que o Dr. Nei abria a boca para lhe falar, Mada sabia: teria que olhar verde na direção do arquivo, abrir verde as gavetas do arquivo, procurar verde os nomes dos compradores e vendedores no arquivo. A mudança se processara. Mas dependia verdemente do arquivo. Seu comportamento girava em torno do arquivo - verde. Sua função era colocar e retirar fichas do arquivo - verde.

Mas a concretização real e objetiva da mudança verificara-se nela própria. Sua pele, antes tão clara, desde que abrira a primeira gaveta para arquivar, fora adquirindo uma tonalidade esverdeada. Durante o arquivo sucessivo dos nomes por ordem alfabética, a cor ia se acentuando. E agora já se firmara.

Durante as primeiros dias sua mãe estranhara, mas como a rotina faz o hábito, terminara aceitando como normal.

No ônibus também despertara a atenção, mas alguns já tinham ouvido falar de casos semelhantes (quem sabe, secretárias como Mada, que tivessem ganho também a função de trabalhar com arquivos?).

Mada percebera também que o escuro da pele de Naná estava cedendo lugar ao tom verde. Não tão rapidamente quanto nela. Naná limpava o arquivo uma só vez por dia, ao passo que ela, Mada, colocava seu tempo sentado em cima do arquivo. O Dr. Nei, então, agora é que apresentava os primeiros indícios de esverdeamento.

– Mada – diz ele – a produção está alta, nossos compradores e vendedores aumentam a cada dia que passa. Tu já não te sentas mais, estás sempre em pé diante do arquivo, colocando e retirando fichas. Por isso encontrei uma solução: alguém pra te ajudar.

– Alguém pra me ajudar?

– Sim, Mada.

– Quando chega?

– Amanhã. Está bem assim?

– Sim, Dr Nei. Está muito bem assim. Alguém pra me ajudar...

*****

*Maria Goreti Alves da Costa, professora aposentada da Rede Estadual de Ensino do Rio Grande do Sul. Formando de 1974 no Curso de Letras da FAPA, de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.


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