Maria Goreti*
Era uma simples secretária.
Sabia, no entanto, que seu trabalho era útil: trazia todos os papéis
necessários ao setor em sua mesa. Seu chefe não localizaria uma nota de venda
(ou compra) sem o seu auxílio.
Até este momento, fora assim. Agora,
tinha a impressão de que seria diferente. Sabia, até mesmo, que haveria uma
mudança. Hoje era o dia marcado para a chegada do arquivo, por isso mesmo
precisava apressar-se. Deveria estar lá para recebê-lo às 7 horas e 30 minutos.
Eram 7. Tomou numa só vez o habitual copo de leite, apanhou sua bolsa e
jogou-se, numa corrida louca, pela escada do prédio. Ganhou a porta: 7 e 5. Não
chegaria a tempo se apanhasse um ônibus. Tomou um táxi. Quinze minutos depois
está na firma.
Quando chega no setor, para sua surpresa, seu chefe já havia chegado. Num tom triunfante, exclama:
Quando chega no setor, para sua surpresa, seu chefe já havia chegado. Num tom triunfante, exclama:
– Bom dia,
doutor Nei. Pontualíssima, não?
– Bom dia, Mada.
São 7 e 20, mas...
– Mas...? – repete Mada intrigada. No
entanto não foi preciso muito tempo para que descobrisse o significado daquele
mas reticenciado. Ocupando uma boa parte da parede, perto de sua mesa,
escondido atrás de uma fina camada de poeira, estava ele. O arquivo já chegara.
Não podia distinguir sua cor. Parecia-lhe cinza, ou azulado, não era possível
identificar com aquela poeira em cima. Sentia algo estranho, algo que suplantava
aquele ar empoeirado do arquivo, algo que lhe marcava mais forte a sensação de
mudança que sentira ainda em
casa. Mas , sendo uma pessoa capaz de adaptar-se a novas
situações, refez-se rapidamente.
– Onde está
Naná? Já chegou? – pergunta.
– Não, ainda não. Deixa,
quando chegar, ela faz a limpezas. Ah! Ei-la. – voltando-se para a mesma – Dona
Naná, o arquivo.
– Mais um móvel pra limpar. Eu
precisava ganhar mais um braço também. Um bom dia pra vocês.
Naná começa sua limpeza pelo arquivo.
Aos poucos a cor verde vai aparecendo. Verde claro, discreto, arrogância suave.
Mada, que ora olhava para o
arquivo, pensando nos papéis a serem arquivados, e ora olhava para os papéis e
pensava no arquivo, surpreende-se quando percebe que sua cor não é cinza nem
azul, mas verde.
– Não
combina com as mesas, nem com coisa alguma aqui. – diz.
O arquivo não foi adquirido para
decoração, dona Mada, e sim, para pôr-se or-ga-ni-za-ção.
Mada não responde. Num gesto que
revela a aprovação das palavras do chefe, começa a separar os papéis. Primeiro
pelo nome, depois pelo valor, pela data, etc. É a ordem que chega.
Depois de separados os papéis dentro
de cada letra do alfabeto, de cada dia do mês e ano, década valor existente,
Mada começa a arquivar. Abre a primeira gaveta: só para os letra A. A segunda:
letra B. C para a terceira, D para a quarta. Depois de uma semana termina.
– Mada, João
Sebastião, Cr$ 300,00, dia 30 passado.
– Só um
instante, doutor Nei.
Dirige-se ao arquivo com os dados
fornecidos badalando em sua cabeça: J S, 300, 30. Depois de João Sebastião
vieram os antônios, os carlos, os josés e todas as variantes de identificação
possíveis.
Mada não se perdia. Achava tudo no
arquivo. na quinta gaveta. Na oitava gaveta.
Cada vez que o Dr. Nei abria a boca
para lhe falar, Mada sabia: teria que olhar verde na direção do arquivo, abrir
verde as gavetas do arquivo, procurar verde os nomes dos compradores e
vendedores no arquivo. A mudança se processara. Mas dependia verdemente do
arquivo. Seu comportamento girava em torno do arquivo - verde. Sua função era
colocar e retirar fichas do arquivo - verde.
Mas a concretização real e objetiva
da mudança verificara-se nela própria. Sua pele, antes tão clara, desde que
abrira a primeira gaveta para arquivar, fora adquirindo uma tonalidade
esverdeada. Durante o arquivo sucessivo dos nomes por ordem alfabética, a cor
ia se acentuando. E agora já se firmara.
Durante as primeiros dias sua mãe
estranhara, mas como a rotina faz o hábito, terminara aceitando como normal.
No ônibus também despertara a
atenção, mas alguns já tinham ouvido falar de casos semelhantes (quem sabe,
secretárias como Mada, que tivessem ganho também a função de trabalhar com
arquivos?).
Mada percebera também que o escuro da
pele de Naná estava cedendo lugar ao tom verde. Não tão rapidamente quanto
nela. Naná limpava o arquivo uma só vez por dia, ao passo que ela, Mada,
colocava seu tempo sentado em cima do arquivo. O Dr. Nei, então, agora é que
apresentava os primeiros indícios de esverdeamento.
– Mada – diz ele – a produção está
alta, nossos compradores e vendedores aumentam a cada dia que passa. Tu já não
te sentas mais, estás sempre em pé diante do arquivo, colocando e retirando
fichas. Por isso encontrei uma solução: alguém pra te ajudar.
– Alguém pra
me ajudar?
– Sim, Mada.
– Quando
chega?
– Amanhã.
Está bem assim?
– Sim, Dr
Nei. Está muito bem assim. Alguém pra me ajudar...
*****
*Maria Goreti Alves da Costa, professora aposentada da Rede Estadual de Ensino do Rio
Grande do Sul. Formando de 1974 no Curso de Letras da FAPA, de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
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