Fora do tempo
Fabrício Carpinejar*
Não deixo o tempo perdoar em meu lugar. Não darei a ele os créditos de minhas dores.
Assumo minhas falhas e eu mesmo peço
desculpa. Minha soberba é menor do que a minha inteligência, e posso garantir
que é bem menor do que o meu coração. Ainda que seja um coração tolo, crédulo,
facilmente influenciável.
Não tenho nenhum problema em perder
uma briga, mas tenho todos os medos na hora de perder um amor. Não permito ao
tempo resolver o que não resolvi, ajeitar o que não ajeitei, concluir o que
abandonei, sugerir o que silenciei, falar por mim. Não assinarei uma procuração
no cartório para que ele defina minha situação.
A franqueza tem que ser paga à vista.
O tempo apenas acumula juros e distorções do nosso valor. Não são os dias, os
meses, os anos afastado daquele que amamos que nos trarão clareza. Até porque a
saudade torna todos os dias iguais, não faz nenhum sentido aguardar o que já se
sabe.
Há o hábito de sumir e desaparecer
quando os dilemas aparecem na vida amorosa. Eu me comprometo até o fim. Se não
tem saída, aproveito para ficar junto.
Sou adepto de permanecer na
tempestade a dois – nenhum dilúvio é para sempre. Sou possessivo com as minhas
lembranças, arrumo a bagunça que armei, explico minhas crises, não transfiro ao
tempo o que é de minha responsabilidade.
Não considero justo o tempo dizer que
eu estava certo ou errado. Isso é confortável, e não existe tranquilidade que
substitua a sinceridade. Melhor errar assinando a página do que acertar
anonimamente.
O tempo organiza, mas não define.
O tempo esfria, mas não cura.
O tempo estanca a hemorragia,
mas não cicatriza.
O tempo elimina a carência,
mas apaga o desejo.
O tempo acalma, mas não
garante o entendimento.
O tempo adia as dúvidas,
mas não consolida as certezas.
O tempo finge que avançamos,
mas não saímos do lugar.
O tempo serve para diminuirmos
a importância das ofensas, mas não resgata os elogios que não serão feitos.
O tempo é o senhor da razão, só que sempre escolho a fé, senhora da ação.
A fé cria seu próprio tempo.
O tempo de amar é agora.
Fabrício Carpinejar
Fabrício por Fraga
O sofrimento não é exclusividade de ninguém
Acabamos nos envergonhando por pensar que os outros não têm
problemas.
Esquecemos
que a vida é generosa para todos os lados nas dívidas e nas dúvidas.
Ninguém
escapa do conflito, do trabalho e das adversidades.
O sofrimento tem o cacoete de fingir
exclusividade, mas ele também mora com o nosso vizinho, com o nosso colega de
trabalho, com a vendedora do armazém da esquina, com o governador eleito.
Desde que me
separei, eu fugia do ourives das alianças.
Eu havia pedido que desenhasse o par
de joias imitando o encaixe do rolamento de um navio: pinos de um se encaixando
nos furos do outro.
Os amigos me aconselharam a encomendar
naquela loja, pois ele, além de um grande artista, dava sorte para o casamento:
seus clientes raramente se divorciavam.
Não queria que ele descobrisse que
não ajudei seu aproveitamento, que puxei suas estatísticas para baixo, que não
me tornei um case de seu sucesso.
Buscava me
livrar do encontro à queima-roupa e da única pergunta que nos unia:
- Como vai o lindo casal?
Meu medo é
que ele, ao apertar minha mão, notasse a ausência da aliança.
Eu me encabulava por não corresponder
suas expectativas, como se ele fosse um padrinho oculto, um cupido adulto, um
fiador do amor.
Tinha duas missões em Porto Alegre : não
frequentar os mesmos lugares da ex e do criador das alianças.
O que me facilitava era que ele
contava com dois metros de altura, um farol de alcance imediato na multidão.
Via o
artesão num restaurante do shopping Praia de Belas e dobrava em direção ao
toalete.
Via o
artesão num bar da Cidade Baixa e me camuflava na pista de dança.
Via o
artesão caminhando na 24 de Outubro e atravessava a rua.
Acho que ele reparou que desaparecia
em todos os lugares. Homem não é discreto quando tem medo.
Eu escolhia sempre um atalho para
evitar cumprimentá-lo. Ele se transformou num SPC matrimonial, num credor
imaginário.
Até que sentado no café Dometila, na
Praça Maurício Cardoso, de costas para a calçada, sinto um braço fechar meus
olhos e uma voz brincar:
- Adivinha
quem é?
Enrubesci. A voz com
sotaque alemão era inconfundível. Menti que desconhecia com a esperança de
decifrar rapidamente a equação do túnel do tempo e do buraco da minhoca.
- Sou
eu, ele riu.
Daí me
encarando sem perdão, lançou a questão:
- Me conta como vai o
casal?
Baixei a
cabeça e assumi:
- Desculpa, nos separamos.
Ele acusou o golpe, puxou a
cadeira e sentou perto de mim:
- Eu lhe entendo, também me
separei. Que tal trocar o café por algo mais forte?
*Fabrício Carpinejar é um poeta,
jornalista e professor universitário, tendo diversos livros publicados e também
muito reconhecido por seus blogs.
Carpinejar, como ele próprio assina, nasceu em Caxias do Sul - Rio Grande do Sul, e logo foi morar
Carpinejar também ganhou muito
destaque, além de seus obras literárias, por seus vários blogs onde publica
muitos de seus textos e escreve sobre outros assuntos pertinentes, como
futebol, e é também muito requisitado para participar de eventos e dar
palestras.
No início, Carpinejar trabalhou
na imprensa, e em 1998 publicou seu primeiro livro: “As Solas do Sol”. Desde
então, Carpinejar também escreveu diversas obras, entre elas: "Meu filho,
minha filha", "Canalha", "Diário de um apaixonado",
"Mulher perdigueira" e outros e foi agraciado por muitos prêmios,
como o "Prêmio Nacional Olavo Bilac" da Academia Brasileira de Letras
no ano de 2003.
Carpi sobrenome da mãe (Maria) Nejar
sobre do pai (Carlos Nejar), que é quinto ocupante da cadeira nº 4, eleito em
24 de novembro de 1988, na sucessão de Vianna Moog, foi recebido em 9 de maio
de 1989 pelo Acadêmico Eduardo Portella. Carlos Nejar, poeta, ficcionista,
crítico, nasceu em
Porto Alegre (RS), em 11 de janeiro de 1939.
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