Jacqueline Ahlert
Tropas
vindas dos pampas destacaram-se na Guerra de Canudos por seus trajes exóticos e
sua extrema violência na execução dos sertanejos.
Ilustração: João
Teófilo
O sangue dos sertanejos ainda
estava fresco nas lâminas gaúchas enquanto o general Artur Oscar escrevia a
Ordem do Dia de 6 de outubro de 1897, concluída com a saudação: “Viva a
República dos Estados Unidos do Brasil! Está terminada a Campanha de Canudos!”.
Soldados recrutados nos pampas foram
um reforço especial na quarta expedição do governo republicano ao vilarejo
baiano, que, surpreendentemente, resistia ao Exército Brasileiro, ao qual
impusera três humilhantes derrotas. Os combatentes gaúchos chamaram a atenção
tanto por suas vestimentas exóticas como pela violência com que participaram da
vitoriosa investida. Suas lanças e espadas carregavam a tradição de barbárie
das recentes guerras ocorridas no Sul.
Em seus 11 meses de duração, a Guerra
de Canudos mobilizou cerca de 12.000 soldados, oriundos de 17 estados
brasileiros. As unidades militares sul-rio-grandenses foram recrutadas apenas
para a quarta e última expedição. Estima-se que mais de 25.000 pessoas morreram
em consequência de toda a ação bélica – entre soldados do Exército Nacional
(contabilizados em 5.000), “sertanejos”, mulheres e crianças.
O conflito ocorreu durante o
conturbado período que sucedeu à queda da monarquia. Corria a primeira década
de instalação do regime republicano quando as unidades do Exército foram
chamadas a enfrentar os moradores do arraial de Canudos, no interior da Bahia,
seguidores de Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, um líder de
discurso messiânico, monarquista, e contra os novos impostos da República.
Depois de três derrotas sucessivas dos militares, a importância do
conflito agigantou-se. Subjugar o arraial dos “jagunços incultos” passou a ser
uma questão de honra para o governo federal. A quarta expedição, de caráter
retaliatório, teve os militares gaúchos entre os principais agentes da
concretização das palavras pronunciadas pelo presidente Prudente de Moraes: “De
Canudos não ficará pedra sobre pedra, para que não mais possa se reproduzir
aquela cidadela maldita”.
A princípio, Artur Oscar, o
comandante da investida, viu-se em maus lençóis. Em vias de sofrer um
esmagamento definitivo, telegrafou ao recém-nomeado ministro da Guerra, o
porto-alegrense Carlos Machado Bitencourt, solicitando o reforço de 5.000
soldados. Confiante na capacidade bélica dos gaúchos, o ministro convocou os
batalhões de Infantaria e Cavalaria das regiões de Bagé, São Gabriel, Rio
Grande, Rio Pardo, Pelotas, Porto Alegre, e de unidades militares transferidas
para o Rio Grande do Sul durante a Guerra Civil de 1893-1895, que, no rastro de
suas 10.000 mortes, ficou conhecida como “revolução da degola”.
Com esses poderosos efetivos
rearmados, Canudos foi cercado por três meses, bombardeado e, por fim,
invadida. Segundo o historiador militar Cláudio Moreira Bento, 341 militares
gaúchos tombaram na luta; entre eles, 33 oficiais. O general Carlos Teles,
comandante de uma unidade sul-rio-grandense em Canudos – e que se destacara na
resistência do cerco revolucionário à cidade de Bagé (1893-1894) –, contribuiu
para a vitória porque, em pleno sertão, formou um esquadrão de lanceiros ao
estilo gaúcho, com 60 homens da Infantaria. Destacaram-se pelo patrulhamento,
combate às emboscadas e missões de suprimento de víveres para as tropas
isoladas.
Flávio de Barros, principal fotógrafo
do conflito, deu especial atenção aos militares gaúchos. Seus fardamentos
extravagantes, misturados com peças da indumentária típica de sua região,
contrastavam com o inóspito cenário e se distinguiam dos uniformes das demais unidades
do Exército na Campanha de Canudos. Recrutados para pelear no sertão, eles não
abdicaram das vestimentas que utilizavam nos combates ao Sul. E a identidade
regional sulina se fazia notar em plenas plagas sertanejas: a pilcha gaúcha
(bombacha, guaiaca, bota, chapéu de abas largas e lenço no pescoço); jaqueta
militar, por vezes; espada e, com menor frequência, revólver à cintura; lanças
de madeira. O general Silva Barbosa e seu Estado-Maior costumavam ser vistos
devidamente “pilchados”.
Para as poses fotográficas, asseavam-se
especialmente, assumindo postura “altiva”. A mão na cintura e geralmente uma
das pernas flexionada à frente são indícios da segurança de saberem o que
representavam e do orgulho de pertencerem àquela confraria. Sua aparência
límpida e elegante era ainda mais notável em oposição ao entorno miserável da
caatinga, em que construções de taipa ponteavam na vegetação seca.
A Cavalaria tipicamente gaúcha de
Silva Barbosa reproduziu no sertão as cargas de lança do pampa. Apesar de
improvisados naquele combate longínquo, “tinham a prática das corridas pulando
sobre as ‘covas de touro’ das campinas do Sul”, escreveria mais tarde Euclides
da Cunha no clássico Os Sertões.
A bombacha, símbolo destacado das
tropas de Cavalaria no outro extremo brasileiro, adquire aspecto ainda mais
exótico e distintivo em
Canudos. Euclides da Cunha, ao tratar do gaúcho, enfatizava
que “as suas vestes são um traje de festa, ante a vestimenta rústica do
vaqueiro. As amplas bombachas, adrede talhadas para a movimentação fácil sobre
os baguais, no galope fechado ou no corcovear raivoso, não se estragam em
espinhos dilaceradores de caatingas.” Euclides também tece loas à combatividade
da Infantaria do Sul, que qualifica como “uma arma de choque”: “Podem
suplantá-la outras tropas, na precisão e na disciplina de fogo, ou no jogo
complexo das manobras. Mas nos encontros à arma branca aqueles centauros
apeados arremetem com os contrários, como se copiassem a carreira dos ginetes
ensofregados das pampas”.
Apesar desses elogios românticos, a
crueza dos fatos venceu o estilo euclidiano. Com seus próprios olhos, o
escritor compreendeu o que significava a especialidade daqueles homens no
manejo da “arma branca”. Os gaúchos agarravam cada derrotado “pelos cabelos,
dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e, francamente exposta a
garganta, degolavam-na”. Conforme Manoel Benício, correspondente do Jornal do
Commercio, do Rio de Janeiro, essas degolas ocorriam “sem diferença a sexo e a
idade”.
Para suas vivências nos cenários da
guerra transpunham, assim, as técnicas das “charqueadas” dos pampas,
impressionante matadouro destinado a obter a matéria-prima para fabricar o
charque (carne-seca), principal produto de exportação, onde se habituavam a
conviver com a morte violenta. É possível imaginar os soldados gaúchos
transitando nos espaços dos combates com os canos das botas e as bombachas
ensanguentadas, insígnias onde tinham limpado as armas assassinas e onde tinha
respingado o sangue das vítimas. Nas imagens posadas para as lentes de Flávio
de Barros, suas roupas não têm manchas de sangue ou mesmo sujidade em excesso. As
fotografias do coronel Joaquim Manuel de Medeiros e seus ajudantes, e do
general Carlos Eugênio e seu Estado-Maior, demonstram a relativa e intrigante
limpeza de suas fardas, visto estarem numa guerra. As bombachas reluzem brancas
em contraste com o cenário sertanejo. Não se visualizam as vítimas da ética e
do estilo gaúcho de guerrear.
Os registros visuais dos gaúchos em
Canudos ilustram a ideia da guerra como ato cultural, além de suas implicações
políticas e econômicas. Representam indivíduos que se consideravam membros de
uma espécie de guilda, uma associação de pares cujos regulamentos, leis e
condutas atribuíam ao espírito da guerra um lugar de destaque. Os militares do
Rio Grande do Sul, por meio da indumentária gauchesca, se autodistinguiram. Ao
praticarem um “serviço relevante” à República que surgia, tiveram sua
“identidade regional” reconhecida por toda a nação. Dessa forma, um grupo
exclusivo da região pecuária dominada pela oligarquia de fronteira – e que
jamais representou a maioria da população rio-grandense – configurou-se como
expressão hegemônica da cultura sulina. Nesse sentido, a Guerra de Canudos
representou o grande evento nacional de reconhecimento oficial do gaúcho,
potencializando no Rio Grande do Sul um movimento identitário que até hoje
marca as relações entre esse povo e os demais brasileiros.
Jacqueline Ahlert é professora
da Faculdade de Artes
e Comunicação da Universidade de Passo Fundo,
do Rio Grande do Sul.
do Rio Grande do Sul.
Excelente texto
ResponderExcluirVerdadeiro massacre o que fizeram com o povo de Canudos.
ResponderExcluirMataram até crianças.
Nós, gaúchos do Rio Grande do Sul, adoramos nos orgulhar de nossas façanhas e revoluções contra a tirania do governo federal.
Mas nos levantamos contra aqueles que se levantaram contra tal governo.
Só quem não leste nada sobre essa "guerra" bate palmas para essa sangria.
Por isso é fundamental a leitura do livro "Os Sertões", de Euclides da Cunha para perceber a dimensão do massacre de Canudos.
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