Heterônimos
Se depois de eu
morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais
simples.
Tem só duas datas - a
da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra
todos os dias são meus.
Mais do que meros pseudônimos,
outros nomes com os quais um autor assina sua obra, os heterônimos são
invenções de personagens completos, que têm uma biografia própria, estilos
literários diferenciados, e que produzem uma obra paralela à do seu criador. Fernando
Pessoa criou várias dessas personagens. Três deles foram excelentes poetas e
seus poemas estão nesta antologia, lado a lado com os que Pessoa assinava com
seu próprio nome. Os estudiosos seguem discutindo por que Pessoa teria criado
seus heterônimos. Seria esquizofrenia? Psicografia? Uma grande piada? Um genial
jogo de marketing poético? De certo, sabemos que a genialidade de Fernando
Pessoa é grande demais para caber em um só poeta. Como bem o sintetizou o seu
heterônimo mais atribulado, Álvaro de Campos:
Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias
pessoas,
Quanto mais personalidades eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Alberto Caeiro (1889 - 1915)
Fernando Pessoa explicou em detalhes a “vida” de cada um de seus heterônimos. Assim apresenta a vida do mestre de todos, Alberto Caeiro:
“Nasceu em Lisboa, mas viveu
quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão, nem educação quase alguma,
só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em
casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia avó.
Morreu tuberculoso.”
Pessoa cria uma biografia para
Caeiro que se encaixa com perfeição à sua poesia, como podemos observar nos 49
poemas da série O Guardador de Rebanhos, incluída por inteiro nesta antologia.
Segundo Pessoa, foram escritos na noite de 8 de março de 1914, de um só fôlego,
sem interrupções. Esse processo criativo espontâneo traduz exatamente a busca
fundamental de Alberto Caeiro: completa naturalidade.
“Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é.
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem por que ama, nem o que é amar...”
Ricardo Reis (1887 -
1935?)
Se Alberto Caeiro era um camponês autodidata desprovido de erudição, seu discípulo Ricardo Reis era um erudito que insistia na defesa dos valores tradicionais, tanto na literatura quanto na política. De acordo com Pessoa:
“Ricardo Reis nasceu no Porto.
Educado em colégio de jesuítas, é médico e vive no Brasil desde 1919, pois se
expatriou espontaneamente por ser monárquico. É latinista por educação alheia,
e um semi-helenista por educação própria.”
Discípulo de Caeiro, Reis retoma
o fascínio do mestre pela natureza pelo viés do neoclassicismo. Insiste nos
clichês árcades do Locus Amoenus (local ameno) e do Carpe Diem (aproveitar o
momento). Neoclássico, Reis busca o equilíbrio, a “Aurea Mediocritas”
(equilíbrio de ouro) tão prezada pelos poetas do século XVIII. A busca da
espontaneidade de Caeiro transforma-se em Reis, na procura do equilíbrio
contido dos clássicos. Deixa de ser uma simplicidade natural e passa a ser
estudada, forjada através do intelecto:
“Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim como em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.”
Álvaro de Campos
(1890 -
1935?)
Fernando Pessoa nos informa que Álvaro de Campos:
“Nasceu em Tavira, teve uma
educação vulgar de Liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia,
primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde
resultou o Opiário. Agora está aqui em Lisboa em inatividade.”
Como normalmente acontece com os
poetas de carne e osso, o heterônimo Álvaro de Campos apresenta três fases
distintas em sua poesia. De início é influenciado pelo decadentismo simbolista,
depois pelo futurismo e por fim, amargurado, escreve poemas pessimistas e
desiludidos.
No poema Opiário, o engenheiro Campos, influenciado pelo simbolismo, ainda metrifica e rima. Escreve quadras, estrofes de quatro versos, de teor autobiográfico e já se apresenta amargurado e insatisfeito:
“Eu fingi que estudei engenharia.
Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avozinha que anda
Pedindo esmolas às portas da alegria.”
Fernando Pessoa, ele
mesmo
A obra que Fernando Pessoa assinou com seu próprio nome está reunida nos volumes Cancioneiro e Mensagem. O Cancioneiro é composto por poemas líricos, rimados e metrificados, de forte influência simbolista. É do Cancioneiro um dos poemas mais célebres de Pessoa, Autopsicografia, em que reflete sobre o fazer poético:
“O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.”
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