quinta-feira, 13 de novembro de 2014

A mão que abriu o ferrolho



Velho conto de Mary Cholmondeley
Reconstituído por Anthony Abbot
(1883-1952)

A mulher, de pé junto à janela, aplicou o ouvido. Estava sozinha na cabana, e olhava distraidamente para a planície deserta, por sobre a qual caiam as primeiras neves daquele inverno.

Mas foi somente ouvir o ruído inesperado, que se sentiu realmente amedrontada. O marido a tinha deixado assim sozinha, mais de uma vez, durante dias a fio. Agora, porém, quando tinha ela a certeza de que estava para ter criança, o caso era diferente. Porque o não informara de tudo, antes que ele partisse?

É que o vira tão preocupado... Se soubesse que ela estava grávida, não teria ido. E já tinha tanto em que pensar... Lembrou-se então dele, em pé, ao lado da janela, com as mãos apoiadas sobre seus ombros, e a falar-lhe da questão que o preocupava. Era coletor de taxas daquele condado, junto à fronteira. Trouxera para casa uma sacola cheia de dinheiro, e o escondera numa lata de biscoito, sob uma tábua da cozinha.

“Mas por quê?”

É que as coisas iam mal. Suas próprias pequenas economias, num lugarejo distante, se achavam seriamente ameaçadas pela falência de um banco. Ele precisava ir até lá, a ver se ainda a salvava. Não ousava, porém, viajar, carregando consigo o dinheiro do condado, motivo pelo qual resolvera ocultá-lo ali. Uma vez salvo o seu pecúlio, iria até a cidade onde estava o banco do estado, e lá depositaria o dinheiro do povo.

“Prometa que, durante a minha ausência, você não sairá daqui, nem deixará ninguém entrar, sob pretexto algum”.

“Prometo”, respondeu a mulher.

Ele já tinha partido, havia várias horas; a noite vinha caindo, e a neve e a escuridão cercavam aos poucos a solitária cabana. Foi quando houve um ruído. Não era o vento; ela conhecia bem o som do vento, que às vezes se assemelhava ao de uma furtiva mão, tentando abrir as portas e as janelas. Não. O que ouvira desta vez, fora uma série de golpes apressados na porta da entrada. Encostando um lado do rosto de encontro à vidraça, no canto da janela, pôde ver o vulto de um homem que se apoiava à porta.

Recuou apressadamente, e, indo ter à lareira, apanhou a pistola do marido. Ele levara a outra, e, por cúmulo de pouca sorte, a que estava armada. A que ficara, de nada lhe valeria. Tomou nas mãos, contudo, e rumou para a porta trancada.

- Quem está aí? Perguntou.

- Um soldado ferido. Me perdi no caminho, e nem posso mais andar. Por favor, abra a porta.

- Prometi a meu marido que não deixaria ninguém entrar durante a ausência dele, respondeu ingenuamente.

- Pois então eu morro em frente à sua porta, replicou o desconhecido.

Mas, depois de uma pausa, insistiu:

- Abra a porta, olhe bem pra mim, e verá que não lhe posso fazer mal algum.

- Meu marido nunca me há-de perdoar, disse ela finalmente, abrindo a porta, em soluços.

Tratava-se de um rapaz que mal se podia suster em pé, de tão exausto. Alto, com o passo vacilante, tinha a cabeça coberta de neve, o rosto pálido e sombrio, e um dos braços enrolado em ataduras.

Ela fê-lo sentar-se na cadeira do marido, junto à lareira, mudou-lhe as ataduras, e serviu-lhe o jantar que havia preparado para si própria. Depois, arranjou-lhe uma cama com dois tapetes e um cobertor, no quarto do fundo. Ele deitou-se, e parecia ter logo adormecido.

Estaria, porém, realmente dormindo? Teria ela caído numa cilada? Talvez o suposto ferido só estivesse esperando que ela pegasse no sono.

Inquieta, pôs-se a andar de um lado para outro, esperando o pior. O silêncio era completo; ouvia-se apenas, de quando em vez, o crepitar da lenha na chaminé. Senão quando um ruído surdo, cuidadosamente abafado, feriu-lhe os ouvidos. Dir-se-ia um rato a roer. De onde viria? Com certeza era o homem do quarto.

Pegando na lanterna, avançou, pé ante pé, pelo corredor, procurando apurar a audição. Pareceu-lhe que o seu hóspede estava respirando forte demais – devia estar fingindo. Abriu-lhe a porta do quarto, entrou devagarinho, e curvou-se sobre o rapaz. Não; estava de fato dormindo.

Saiu do quarto, e ouviu novamente o mesmo ruído. Já agora não teve dúvida: alguém tentava forçar o trinco da porta,

Abriu a caixa onde o marido guardava as ferramentas, tirou dela uma navalha, e voltou nas pontas dos pés, para o quarto do soldado. Sacudiu-lhe o ombro, e ele abriu os olhos, soltando um gemido:

- Ouça, murmurou, - alguém está tentando entrar na casa. Me ajude.

- Que é que um ladrão quer aqui? Perguntou o ferido, atônito. – Não há nada pra roubar!

- Há, sim, respondeu-lhe ela. – Há uma sacola de dinheiro escondida no chão da cozinha. Arrependeu-se imediatamente de tê-lo dito, mas já era tarde.

- Apanhe meu revólver, disse então o soldado. – Só sei atirar com a mão direita, a doente. Me passe a navalha.

Ela hesitou um segundo, mas, como ouvisse novamente o ruído no trinco, fez depressa a troca.

- Encarregue-se do primeiro que entrar, recomendou o hóspede. Fique perto da porta, e no momento em que esta se abrir, atire. Aqui estão seis balas. Continue atirando até que ele caia, e fique no chão. Eu fico logo atrás, com a navalha, para tomar conta do segundo. Logo que nós chegarmos à porta, apague a lanterna.

A escuridão era completa. O misterioso ruído cessou por fim, e ouviu-se, ao invés, o som dos gonzos, deslizando devagar. O ferrolho já cedera. Súbito, a porta abriu-se, e um homem entrou. Ela viu num relance a silhueta recortada sobre a alvura da neve, e abriu fogo. Ele caiu, mas levantou-se, de novo, e ela atirou outra vez. O homem, ainda no chão, tentou erguer-se sobre os joelhos, mas foi atingido em cheio por um novo tiro. Deixou-se então escorregar, devagarinho, com o rosto de encontro ao muro, e ali ficou, imóvel.

O soldado exclamou, surpreso:

- Então, era só um!

E acrescentou:

- Olhe que a senhora tem uma boa pontaria!

Puxou o corpo da vítima, de maneira a deitá-lo de costas. Viram então que o homem trazia uma máscara. A mulher aproximou-se, e tinha os olhos presos ao morto, quando o soldado, tirando a este a máscara, perguntou:

- Sabe quem é?

Ela sacudiu a cabeça.

- Para mim, é um estranho, respondeu.

E, sem um tremor sequer, contemplava imóvel o rosto do homem que viera roubar a si mesmo – seu marido.

*****

(In Seleções do Reader´s Digest – janeiro de 1945)


Anthony Abbot

(1883-1952)

Nasceu Charles Fulton Oursler em Baltimore, Maryland EUA. É jornalista, repórter, editor e escritor. Usa o pseudônimo Anthony Abbot para a escrita de temas policiais. Com o seu primeiro livro About the Murder of Geraldine Foster (1930) cria o Inspetor Thatcher Colt, o mais trabalhador e tenaz caçador de criminosos; Thatcher é um felizardo, solteiro que habita uma casa de cinco pisos em Manhatan West, com ginásio próprio e uma biblioteca de 5000 volumes sobre criminologia. Os primeiros livros de Anthony Abbot começam sempre pela palavra About, no entanto nas edições seguintes o título é diferente, o que baralha os seus leitores. Publica vários romances e contos - ver adenda. Abbot é um clássico entre os clássicos.

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