Uma crônica de Armando Nogueira
Sua vocação de jogador de
futebol é incomparável e se exprime no campo com a mesma espontaneidade da bola
que rola; é tão perfeito no criar como no fazer o gol, no drible, no passe, no
chute, na cabeçada. Seja em que circunstância for, Pelé mantém com a bola uma
relação de coexistência absolutamente íntima, terna, cordial; por isso é bom
goleiro e ótimo goleador; por isso é capaz de estar, ao mesmo tempo, na
concepção e na realização de uma jogada. Seu talento é do tipo esférico como a
bola, o seu brinquedo mágico.
A técnica individual de
Pelé não merece um só reparo do mais exigente crítico de futebol; ele domina a
bola com naturalidade e perfeição, usando qualquer parte do corpo, notadamente
os pés e o peito; tem chute potente e certeiro com as duas pernas; dribla com
facilidade e grande arte, valendo-se de incrível poder de articulação nos
tornozelos, joelhos, cintura e, sobretudo, graças a uma força instintiva,
medular, que lhe permite sair criando movimentos novos, irresistíveis, à base
de contrapés, falsas hesitações, meneios e desequilíbrios aparentes. Usa as
faces exteriores e interiores dos pés tanto para o drible e o chute como para
fazer passes de efeito; tem espantosa velocidade de partida e de corrida e se
eleva para cabeçadas com uma elasticidade impressionante e com uma noção de
tempo que só se vê nos grandes especialistas dessa jogada; tem agilidade felina
para recobrar o equilíbrio perdido. E aqui vale recordar o lance do jogo Brasil 5 X Argentina 1, (1960), no
Maracanã. Pelé recebe a bola na corrida, entra na defesa driblando uma fila de
adversários; o último, pressentindo o perigo, aplica uma rasteira que alcança
Pelé em pleno ar. Pelé se desequilibra, vai cair de costas, a bola foge ao seu
domínio, o juiz apita a falta. Mas eis que no instante do apito, Pelé consegue
recobrar o equilíbrio, alcança novamente a bola e restabelece a excelente
condição de gol que conseguira. A essa altura, porém, já o árbitro havia
interrompido o jogo e todo o maravilhoso esforço de recuperação de Pelé
resultava inútil. Restou-lhe o consolo de ver o árbitro Juan Armental correr na
sua direção e pedir-lhe desculpa humildemente, por ter apitado. Mais tarde, o
juiz explicava à imprensa que aquele fora o maior exemplo de agilidade pessoal
jamais visto em um campo de futebol nos seus vinte anos de arbitragem.
Por fim, Pelé tem uma
capacidade quase irreal de infiltrar-se com a bola defesa a dentro. Vai como um
raio, dando a impressão ao espectador de que está atravessando os corpos dos
adversários. Temos ouvido tanta gente querendo descrever as infiltrações de
Pelé mais ou menos assim: “Ele ia passando por dentro dos outros.” Realmente, o
lance é muito rápido e sugere a imagem. O que ocorre, simplesmente, é que ele
realiza a ação em alta velocidade e com notável noção do próprio corpo, que lhe
assegura o mínimo de tropeços, o máximo de equilíbrio e grande fluência na
corrida.
Em apenas três anos de
prática ininterrupta, Pelé melhorou sensivelmente o seu futebol. Não tanto do
ponto de vista da técnica individual, que isso ele é perfeito de nascença, mas
do plano da ação coletiva. Antes, Pelé era um atacante, um especialista dos
chutes e cabeçadas à porta do gol; hoje, ele multiplica sua presença
conseguindo ser, com igual eficiência, construtor e finalizador: num momento,
Pelé é arco que aciona e em seguida vai ser e flecha que alveja. Do ponto de
vista moral, ele já se destaca como grande animador de equipes, impondo aos
colegas e aos adversários a autoridade indiscutível que vem da alta categoria
técnica. Uma única face de sua personalidade não tem evoluído no sentido da
perfeição: a serenidade. Ele perdeu muito daquela ingenuidade com que jogava no
começo da carreira; ficou irritadiço, impaciente. Mas, coitado, tanto sofreu
nos pés dos medíocres, tanto lhe deram pontapés que ele deixou de ser aquela
força da natureza exprimindo-se puramente, sem amargor. Antes, davam-lhe um
trompaço brutal, ele se levantava, limpava os calções e ia tomar posição de
jogo; agora, se o derrubam com deslealdade, ele reclama furiosamente.
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