Antigamente, espeto corrido era correr atrás do boi.
Por Eduardo Bueno
Churrasqueado por Voldinei B Lucas
O gaúcho é carnívoro por
excelência. Isso não significa que coma tudo o que se move: o gaúcho é seletivo
e suas carnes preferidas são de ovelha, porco e, é claro, de gado, porque
churrasco de verdade – churrasco de lei – tem que ser de gado. Nada mais
natural, uma vez que, tão logo se fez carne (por causa do gado), o gaúcho
inventou o churrasco. Embora as primeiras carnes tenham sido assadas no tempo
das cavernas, o churrasco tal como o conhecemos nasceu no pampa. A prova é o
DNA da palavra “churrasco”, um espanholismo do ancestral basco “sukarra” – que
significa “assado”. O churrasco foi resultado prático e lógico do encontro
entre o gaúcho e o gado; o fruto de uma relação de causa e efeito. Nas
pastagens mais gordas da Terra, a gadaria vivia à solta desde a destruição das
Reduções Jesuíticas em fins do século XVII. O gaúcho surgiu como uma espécie de
pastor nômade de gado chimarrão, xucro e sem dono. Charruas, minuanos,
“guascas” e “guaxos” capturavam e matavam vacuns, faziam um fogo de chão,
enfiavam em um espeto de pau, assavam, temperavam com as cinzas do braseiro e
comiam – muitas vezes, só a costela de ripa. O autêntico churrasco, portanto,
não começa no açougue: começa com o gaúcho encilhando o cavalo; laçando a rês e
carneando o bicho. Para carnear são necessários dois ou três homens. A função
se inicia com um pontaço de faca na jugular do animal. Assim que o boi (ou a
vaca) descansa em paz, abre-se o couro “desde o beiço de baixo até o sabugo da
cola”. O couro se transforma então no tapete onde o gaúcho executa, com
destreza e naturalidade, um espetáculo tétrico que ele transformou em arte.
Como hoje, não há mais gado
solto por aí, o churrasco pampiano queimou etapas e se refinou, embora o sal
continue grosso, desde que substituiu as cinzas e o suor dos cavalos, pois a
carne era temperada na ‘carona”, artefato de couro colocado sob a sela. O
espeto não é mais de pau nem em casa de carpinteiro, usa-se garfo em vez de
ponta de faca, e a costela agora vem acompanhada de picanha, alcatra, chuleta e
maminha. Isso não significa que o churrasco possa ser feito de qualquer jeito,
assim ou assado. Seja na sacada de um apartamento, em um restaurante paulista
ou na orgia de um rodízio, é preciso manter a dignidade do ritual. Para que a
alquimia funcione são necessários apenas três elementos: carne, sal e fogo – o
segredo é combiná-lo na medida certa. O fogo - de lenha para os especialistas,
de carvão para os demais – tem que virar um braseiro vermelho, sem fumaça.
Brasa dormida e fogo morto não prestam para nada, embora sapecar a carne com a
chama alta seja sacrilégio tão grave quanto bostear o mate. Vários outros
pecados envolvendo a carne não podem ser cometidos. Afinal, para o gaúcho, a
vaca é sagrada quando vira repasto.
Enquanto os homens não
resistirem às tentações da carne, enquanto houver gordura pingando nas brasas,
a tradição gaúcha estará viva em carne e osso.
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