domingo, 21 de setembro de 2014

O erudito Rui Barbosa



Rui Barbosa, o sisudo, um poço sem fundo de erudição, talvez tenha sido um dos homens públicos mais caricaturados no Brasil de Machado de Assis, Chiquinha Gonzaga, Raul Pederneiras, K. Lixto, J.Carlos e Nair de Tefé. Levava-se tão a sério que difícil seria para a população brasileira, principalmente a carioca, não zombar de tamanha sisudez, ranzinzice e austeridade. A maioria dos textos ruibarbosianos caracterizava-se por um sarapatel indigesto de antífrases, antonomásias, disfemismos, hipálages, metalepses, matiazites, anadiploses, sínqueses, prolepses, oxímoros. Que não são doenças, nem curas, mas figuras de pensamento e construção a afundar cada vez mais o homem comum, semi-analfabeto, nas trevas da própria ignorância.

De como Rui Barbosa, o erudito, despetalava a flor do Lácio caprichosamente, glosa-se, até hoje, em todos os principais cursos de Direito do Brasil. E os casos se tornaram extravagantes, quando, por motivos alheios à própria vontade, o luminar descia da torre de marfim para contatos fortuitos com a plebe rudimentar.

Notável se fez o episódio do flagrante a um ladrão de patos. Rui Barbosa, o douto, ao chegar certa noite ao casarão onde morava, na então aprazível Rua São Clemente, em Botafogo, ouviu um barulho estranho vindo do quintal. Apressou-se o suficiente para flagrar um homem que pulava o muro, tentando furtar-lhe os patos de estimação. Aproximou-se, vagarosamente, e bateu nas costas do gatuno com o castão da bengala:

- Bucéfalo, não é pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes e sim pelo ato vil e sorrateiro de galgares os profanos de minha residência. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares de minha alta prosopopeia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica no alto de tua sinagoga que te reduzirá à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada.

O ladrão espantado, confuso, amedrontado, aterrorizado, apertou os olhos e balbuciou:

- Doutor, levo ou não levo os patos?

*****

Certa feita, Rui Barbosa, o preclaro, ingressara no bonde em Santa Teresa e se sentara em um dos bancos de três lugares, recostando-se confortavelmente, quando uma conhecida atriz francesa da época, muito gorda e patusca, acomodou-se justamente ao lado do nosso sábio. O ferrocarril estava praticamente vazio. Suando copiosamente, Ruy, angustiado, olhava de soslaio a mulher, que, a cada solavanco, o espremia mais contra a murada do coletivo. De supetão, após mirar e constatar que todo o banco traseiro estava vazio, berrou:

- Atrás há três, atriz atroz!

Julgando-se cortejada por senhor tão elegante e nobre, a imensa e ignorante coquete francesa reprimiu um risinho, abanando-se com um leque colorido, e seguiu a viagem inteira tentando seduzir o impaciente cavalheiro da severa figura.

*****

Conta a lenda que, antes de morrer, aos 73 anos, no primeiro dia de março de 1923, Rui Barbosa, o profeta, teve pelo menos mais um contato direto com o povo que lhe teria deixado furioso, inconformado, estarrecido e desolado como nunca! O jurista, político, diplomata, escritor, filólogo, tradutor e orador brasileiro sofria com a perda de visão na velhice. Esperava um bonde no Passeio Público, próximo aos Arcos da Lapa, quando percebeu que, no fim da rua, apontava a condução. Ele aproximou-se de uma preta velha, gorda e bonachona, lenço de pano encardido na cabeça, para perguntar-lhe sobre o número ou o nome da direção do bonde que se aproximava.

- Meu senhor, me desculpa, porque querer ajudar eu quero. Mas acontece que eu também sou analfabeta!

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Rui ou Ruy

A Certidão de Nascimento de Ruy Barbosa

Ruy Barbosa ou Rui Barbosa?

1) Numa elevada discussão entre leitores, questiona-se como grafar o nome do nosso amado jurista baiano: Ruy Barbosa ou Rui Barbosa. Um levanta a divergência entre o “site” do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia e o da Fundação Casa de Rui Barbosa. Outro tenta solucionar com o abono da certidão de nascimento.

2) Fixe-se, nessa matéria, um importante princípio: os nomes próprios sujeitam-se às regras normais de ortografia e de acentuação gráfica, assim como qualquer outra palavra da língua. Por isso se deve escrever Antônio, Luís, Mateus, Rui, e não Antonio, Luiz, Matheus ou Ruy.

3) Confirma-se na lei tal afirmação: o item XI, subitem 39, do Formulário Ortográfico da Língua Portuguesa – em instruções aprovadas unanimemente pela Academia Brasileira de Letras na sessão de 12.8.43 – assim determina: “Os nomes próprios personativos, locativos e de qualquer natureza, sendo portugueses ou aportuguesados, serão sujeitos às mesmas regras estabelecidas para os nomes comuns”.

4) Especificando, na consonância com o item I, subitens 1 e 2, das mesmas instruções, o y só pode ser usado em casos especiais:

I) “em abreviaturas e como símbolo de alguns termos técnicos e científicos” (cf. item II, subitem, 9), como y (de ítrio) ou yd (de jarda);

II) “nos derivados de nomes próprios estrangeiros” (cf. item II, subitem 10), como em byroniano, mayardiana ou taylorista.

5) Observe-se que a Academia Brasileira de Letras detém delegação legal para definir a extensão de nosso léxico, as regras de como escrever os vocábulos, assim como a acentuação e a pronúncia, de modo que sua palavra não significa mera posição ou opinião, mas é a própria lei, que deve ser seguida, de modo que qualquer outra discussão há de situar-se apenas no campo da polêmica científica e da discussão doutrinária.

6) É oportuno acrescentar proveitosa lição de Pasquale Cipro Neto e Ulisses Infante para a situação ora analisada: “A grafia dos nomes de todos os que se tornam publicamente conhecidos aparece corrigida em publicações feitas após a morte dessas pessoas”.1

7) De Arnaldo Niskier também é lição nesse sentido: “Passando desta para a melhor, a norma é escrever seus nomes de acordo com as regras ortográficas”, razão pela qual “um Antonio Luiz só o será em vida: depois da morte passará a ser, portuguesmente, Antônio Luís”.2

8) Em resumo, a situação do caso concreto da consulta deve ser assim solucionada: em vida, o jurista baiano chamava-se Ruy Barbosa de Oliveira. Após sua morte, deve-se grafar Rui Barbosa de Oliveira.

1. Cf. CIPRO NETO, Pasquale; INFANTE, Ulisses. Gramática da Língua Portuguesa. São Paulo: Editora Scipione, 1999, p. 42.

2. Cf. NISKIER, Arnaldo. Questões Práticas da Língua Portuguesa: 700 Respostas. Rio de Janeiro: Consultor, Assessoria de Planejamento Ltda., 1992, p. 45.

(Do Blog Gramaticalhas)



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