quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Contos de Humberto de Campos

Os dois hóspedes

Entre muitos hotéis da cidade, aquele era o mais aristocrático. Situado num dos pontos mais altos, era ali que se hospedavam os viajantes mais ricos e respeitáveis, alguns dos quais acabavam fixando residência no edifício. A Bondade, a Ternura, o Ódio, a Saudade, moravam nele. Jovem e sadia, a Alegria ocupava uma torre esguia e clara que o Sol fazia faiscar, logo que amanhecia. A Tristeza, sempre vestida de negro, vivia num quarto sem luz, que apenas os morcegos visitavam. A Hipocrisia habitava um subterrâneo, e a Mentira, um compartimento estreito, cercado de portas falsas, que lhe facilitavam a fuga à simples aproximação da Verdade.

Era nesse edifício que morava, chamando a atenção de todos, um cavalheiro moço, forte, musculoso, que, às vezes se mostrava doce, polido, gentil, tolerante, e outras, irritado, hostil, intransigente, e, não raro, malcriado. Era vizinho do Ciúme e, sob o menor pretexto, alternava com ele, que era, em geral, secundado pela Dúvida, cujos aposentos ficavam juntos e tinham secreta comunicação interna.

Certo dia, esse cavalheiro, após uma discussão com os outros hóspedes, resolveu abandonar o quarto que ocupava no hotel. Foi um escândalo. Gritos, súplicas, desmaios, bater de portas e tampas de malas, tudo isso chegou até fora, alertando a vizinhança. O cavalheiro foi-se, porém, embora, deixando vazio o quarto em que o iam visitar, alternadamente, a Ventura e o Tormento.

À tarde, bateram à porta do hotel. Era uma senhora tímida, modesta, fisionomia bondosa, modos recatados, que desejava aposento.

 Temos apenas um quarto, minha senhora. Foi desocupado hoje mesmo, - explicou o dono do hotel.

E indicando-lhe o compartimento:

 Entre! Aqui morava, até ontem, o Amor.

 Quem? ‒ estranhou a pretendente.

 O Amor.

 Ah! Não serve! ‒ tornou a candidata, retirando-se. ‒ Eu não posso residir onde esteve esse senhor.

 E a senhora, quem é?

 Eu sou a Amizade! ‒ explicou a recém-chegada.

E desceu, um a um, os degraus do edifício, que tinha, não se sabe por quê, a forma de um coração...

O sapateiro


Andava o Sr. Manoel Lourenço pelos quarenta anos de vida, dos quais vinte e cinco haviam sido consumidos em calçar de chinela e tamancos a décima parte da população local, quando lhe apareceu na oficina, para encomendar um sapatinho de cordavão, a risonha Clotildinha, meninota de quatorze anos, mais ou menos, pertencente a uma família modesta, mas honrada, residente no lugar. Respeitoso, o Manoel Lourenço ajoelhou-se no chão, marcou no tijolo, com dois riscos de faca, o tamanho do pé, apanhou-lhe a altura com uma tira de papel dobrado, e, não sabe como, ao erguer-se, estava inteiramente transfigurado de coração.

À noite, o pobre sapateiro não pode dormir. Mal fechava os olhos, e surgia-lhe no pensamento a perna morena da Clotildinha, a emergir do mistério da saia curta, de chita encamada, como se fosse o caule duplo de uma rosa em botão, cujo perfume lhe ficava eternamente vedado. E tanto o mísero se preocupou, aflito, com o caso, que, um mês depois, estavam casados, com todos os sacramentos e todas as bênçãos, a menina e o sapateiro da Baixa Verde.

Só depois de casado, porém, foi que o Sr. Manoel Lourenço verificou a barbaridade que cometera. Menina ainda, a Clotildinha podia ser, pela sua idade, pelas suas maneiras e, principalmente, pelo seu físico, sua filha e, até - quem sabe? - sua neta. E era pensando nisso que a mantinha a seu lado carinhosamente, paternalmente, tratando-a como quem trata uma criança.

Quem não gostava desses modos era, porém, a Clotildinha. O Manoel Lourenço tinha ido buscá-la à casa materna para mulher, para companheira, para sócia da sua vida e do seu destino, era natural, portanto, que a tratasse como tal, fazendo-lhe participar da existência em comum, e, até, dos negócios comerciais da sua oficina.

Certa manhã, havia o Manoel Lourenço acordado cedo e, como de costume, chamou a menina, ordenando-lhe que se sentasse a seu lado, na beira da rede, para conversarem. A moça sentou-se, e conversavam os dois, como pai e filha, com os olhos pregados no teto, quando viram, de repente, correr um camundongo, um ratinho de meia polegada, o qual, passando entre os caibros e as telhas, se foi perder, em cima, nos buracos da cumeeira. Ao ver o rato, Clotildinha virou-se, de súbito, para o marido, e pediu, dengosa:

 Sabes, Manoel, que é que eu queria?

 Que é? ‒ indagou o esposo, divertindo-se com aquela alegria.

 Eu queria que tu matasses aquele rato e fizesses um par de sapatos para mim!

O sapateiro achou graça na infantilidade da moça, e retrucou, rindo:

‒ Que tolice, Clotilde! Tu não vês que o couro daquele camundongo não dá para um par de sapatos?

A moça encarou-o com as faces em brasa, e, pondo a cabeça no seu peito, gemeu, na ânsia de possuir o seu sapato:

 Dá, Manoel, dá!

E ao seu ouvido, com a voz trêmula:

 Olha, Manoel, o couro... espicha!

Humberto de Campos Veras


Miritiba, hoje Humberto de Campos, Estado do Maranhão,
25 de outubro de 1886 - Rio de Janeiro, 5 de dezembro de 1934
Foi um jornalista, político e escritor brasileiro.




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