Os dois hóspedes
Entre muitos hotéis da cidade,
aquele era o mais aristocrático. Situado num dos pontos mais altos, era ali que
se hospedavam os viajantes mais ricos e respeitáveis, alguns dos quais acabavam
fixando residência no edifício. A Bondade, a Ternura, o Ódio, a Saudade,
moravam nele. Jovem e sadia, a Alegria ocupava uma torre esguia e clara que o
Sol fazia faiscar, logo que amanhecia. A Tristeza, sempre vestida de negro,
vivia num quarto sem luz, que apenas os morcegos visitavam. A Hipocrisia
habitava um subterrâneo, e a Mentira, um compartimento estreito, cercado de
portas falsas, que lhe facilitavam a fuga à simples aproximação da Verdade.
Era nesse edifício que morava,
chamando a atenção de todos, um cavalheiro moço, forte, musculoso, que, às
vezes se mostrava doce, polido, gentil, tolerante, e outras, irritado, hostil,
intransigente, e, não raro, malcriado. Era vizinho do Ciúme e, sob o menor
pretexto, alternava com ele, que era, em geral, secundado pela Dúvida, cujos
aposentos ficavam juntos e tinham secreta comunicação interna.
Certo dia, esse cavalheiro, após uma
discussão com os outros hóspedes, resolveu abandonar o quarto que ocupava no
hotel. Foi um escândalo. Gritos, súplicas, desmaios, bater de portas e tampas
de malas, tudo isso chegou até fora, alertando a vizinhança. O cavalheiro
foi-se, porém, embora, deixando vazio o quarto em que o iam visitar, alternadamente,
a Ventura e o Tormento.
À tarde, bateram à porta do hotel. Era
uma senhora tímida, modesta, fisionomia bondosa, modos recatados, que desejava
aposento.
‒ Temos apenas um quarto,
minha senhora. Foi desocupado hoje mesmo, - explicou o dono do hotel.
E
indicando-lhe o compartimento:
‒ Entre!
Aqui morava, até ontem, o Amor.
‒ Quem? ‒ estranhou a pretendente.
‒ O
Amor.
‒ Ah! Não serve! ‒ tornou
a candidata, retirando-se. ‒ Eu não posso residir onde esteve esse senhor.
‒ E a
senhora, quem é?
‒ Eu
sou a Amizade! ‒ explicou a recém-chegada.
E desceu, um a um, os degraus do
edifício, que tinha, não se sabe por quê, a forma de um coração...
O sapateiro
Andava o Sr. Manoel Lourenço pelos quarenta
anos de vida, dos quais vinte e cinco haviam sido consumidos em calçar de
chinela e tamancos a décima parte da população local, quando lhe apareceu na
oficina, para encomendar um sapatinho de cordavão, a risonha Clotildinha,
meninota de quatorze anos, mais ou menos, pertencente a uma família modesta,
mas honrada, residente no lugar. Respeitoso, o Manoel Lourenço ajoelhou-se no
chão, marcou no tijolo, com dois riscos de faca, o tamanho do pé, apanhou-lhe a
altura com uma tira de papel dobrado, e, não sabe como, ao erguer-se, estava
inteiramente transfigurado de coração.
À noite, o pobre sapateiro não pode
dormir. Mal fechava os olhos, e surgia-lhe no pensamento a perna morena da
Clotildinha, a emergir do mistério da saia curta, de chita encamada, como se
fosse o caule duplo de uma rosa em botão, cujo perfume lhe ficava eternamente
vedado. E tanto o mísero se preocupou, aflito, com o caso, que, um mês depois,
estavam casados, com todos os sacramentos e todas as bênçãos, a menina e o
sapateiro da Baixa Verde.
Só depois de casado, porém, foi que o
Sr. Manoel Lourenço verificou a barbaridade que cometera. Menina ainda, a
Clotildinha podia ser, pela sua idade, pelas suas maneiras e, principalmente,
pelo seu físico, sua filha e, até - quem sabe? - sua neta. E era pensando
nisso que a mantinha a seu lado carinhosamente, paternalmente, tratando-a como
quem trata uma criança.
Quem não gostava desses modos era,
porém, a Clotildinha. O Manoel Lourenço tinha ido buscá-la à casa materna para
mulher, para companheira, para sócia da sua vida e do seu destino, era natural,
portanto, que a tratasse como tal, fazendo-lhe participar da existência em
comum, e, até, dos negócios comerciais da sua oficina.
Certa manhã, havia o Manoel Lourenço
acordado cedo e, como de costume, chamou a menina, ordenando-lhe que se
sentasse a seu lado, na beira da rede, para conversarem. A moça sentou-se, e
conversavam os dois, como pai e filha, com os olhos pregados no teto, quando
viram, de repente, correr um camundongo, um ratinho de meia polegada, o qual,
passando entre os caibros e as telhas, se foi perder, em cima, nos buracos da
cumeeira. Ao ver o rato, Clotildinha virou-se, de súbito, para o marido, e
pediu, dengosa:
‒ Sabes, Manoel, que é que eu queria?
‒ Que é? ‒ indagou o esposo, divertindo-se com aquela alegria.
O sapateiro achou graça na infantilidade da moça, e retrucou, rindo:
‒ Que é? ‒ indagou o esposo, divertindo-se com aquela alegria.
‒ Eu queria que tu matasses
aquele rato e fizesses um par de sapatos para mim!
O sapateiro achou graça na infantilidade da moça, e retrucou, rindo:
‒ Que tolice, Clotilde! Tu
não vês que o couro daquele camundongo não dá para um par de sapatos?
A moça encarou-o com as faces em
brasa, e, pondo a cabeça no seu peito, gemeu, na ânsia de possuir o seu sapato:
‒ Dá,
Manoel, dá!
E ao seu ouvido, com a voz trêmula:
‒ Olha, Manoel, o couro... espicha!
E ao seu ouvido, com a voz trêmula:
‒ Olha, Manoel, o couro... espicha!
Humberto de Campos Veras
Miritiba, hoje Humberto de Campos, Estado do Maranhão,
25 de outubro de 1886 - Rio de Janeiro, 5 de dezembro de 1934
Foi um jornalista,
político e escritor brasileiro.25 de outubro de 1886 - Rio de Janeiro, 5 de dezembro de 1934
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