segunda-feira, 4 de agosto de 2014

A ponte

          

O comboio saiu do túnel para a manhã luminosa. Mário perguntou ao chefe de trem:
- Que horas são?
O homem tirou do bolso o relógio de platina e olhou o mostrador:
- Son las cinco de la tarde.
- Por que estamos tão atrasados?
- Porque levamos no trem o cadáver de um toureiro.
- Ah!
- Um touro rasgou-lhe o estômago com as aspas.
Mário olhou para fora. Reconhecia as paisagens da infância.
- Que é isso no peito? - perguntou o chefe de trem.
Mário abriu mais a camisa e disse:
- Uma tatuagem. Uma flor. É para a minha namorada que está me esperando do outro lado da ponte.
- Quantos anos você tem, menino?
- Vinte.
- Em que trabalha?
- Sou marinheiro.
- Donde vens?
- Das Índias.
O homem sacudiu lentamente a cabeça, compreendendo. Depois sumiu-se. O trem apitou. Mário meteu a cabeça para fora do carro e avistou a estação. Lá estava o boné vermelho do agente, o velho sino, a tabuleta com o nome da vila...
O trem parou, resfolegando como uma besta cansada. Mário precipitou-se para fora do carro, saltou para a plataforma
- E a sua bagagem? - perguntou alguém.
Ele soltou uma risada.
- Não tenho. Só essa flor.
Mostrou a tatuagem. Respirou o ar que cheirava a folhas secas queimadas. Devia ser abril. Desceu apressado a encosta, acenando para os conhecidos. De todos os lados brotavam vozes: “O Mário voltou!” As vozes espraiavam-se pelo vale, subiam os cerros, o eco as repetia longe. “O Mário voltou... ou... ou... ou...”
Mário sentia no corpo a força dum potro. Não se conteve: rompeu a correr. Bebia o vento como quem bebe água. Avistou longe o vulto da mãe, negro e imóvel diante da casa. Ela o esperava. Nada tinha mudado.
Viu a ponte e estacou, temendo que Antônia não o estivesse esperando. Seu coração teve um súbito desfalecimento. Mas não! Lá estava ela parada do outro lado da ponte de pedra, o vento modelava-lhe as formas, soprava-lhe os cabelos, seu corpo dourado resplandecia. Pomona!
Mário abriu os braços e, correndo e sorrindo, cruzou a ponte.

(Do livro “Fantoches”, de Érico Veríssimo)


Desenho de Xico Carlos

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