Chegaram ao Largo da Carioca,
apearam-se e despediram-se; ela entrou pela Rua Gonçalves Dias, ele enfiou pela
da Carioca. No meio desta, Aires encontrou um magote de gente parada, logo
depois andando em direção ao largo. Aires quis arrepiar caminho, não de medo,
mas de horror. Tinha horror à multidão. Viu que a gente era pouca, cinqüenta ou
sessenta pessoas, e ouviu que bradava contra a prisão de um homem. Entrou num
corredor, à espera que o magote passasse. Duas praças de polícia traziam o
preso pelo braço. De quando em quando, este resistia, e então era preciso
arrastá-lo ou forçá-lo por outro método. Tratava-se, ao que parece, do furto de
uma carteira.
- Não furtei nada! -
bradava o preso detendo o passo. É falso! Larguem-me! Sou um cidadão livre!
Protesto! protesto!
- Siga
para a estação!
- Não
sigo!
- Não
siga! -
bradava a gente anônima. - Não siga! Não siga!
Uma das praças quis convencer a
multidão que era verdade, que o sujeito furtara uma carteira, e o desassossego
pareceu minorar um pouco; mas, indo à praça a andar com a outra e o preso, - cada
uma pegando-lhe um dos braços, a multidão recomeçou a bradar contra a
violência. O preso sentiu-se animado, e ora lastimoso, ora agressivo, convidava
a defesa. Foi então que a outra praça desembainhou a espada para fazer um
claro. A gente voou, não airosamente, como a andorinha ou a pomba, em busca do
ninho ou do alimento, voou de atropelo, pula aqui, pula ali, pula acolá, para todos
os lados. A espada entrou na bainha, e o preso seguiu com as praças. Mas logo
os peitos tomaram vingança das pernas, e um clamor ingente, largo,
desafrontando, encheu a rua e a alma do preso. A multidão fez-se outra vez
compacta e caminhou para a estação policial. Aires seguiu caminho.
A vozeria morreu pouco a pouco, e
Aires entrou na Secretaria do Império. Não achou o ministro, parece, ou a
conferência foi curta. Certo é que, saindo à praça, encontrou partes do magote
que tornavam comentando a prisão e o ladrão. Não diziam ladrão, mas gatuno,
fiando que era mais doce, e tanto bradavam há pouco contra a ação das praças,
como riam agora das lástimas do preso.
- Ora
o sujeito!
Mas então?... perguntarás tu. Aires
não perguntou nada. Ao cabo, havia um fundo de justiça naquela manifestação
dupla e contraditória; foi o que ele pensou. Depois, imaginou que a grita da
multidão protestante era filha de um velho instinto de resistência à
autoridade. Advertiu que o homem, uma vez criado, desobedeceu logo ao Criador,
que aliás lhe dera um paraíso para viver; mas não há paraíso que valha o gosto
da oposição. Que o homem se acostume às leis, vá; que incline o colo à força e
ao bel-prazer, vá também; é o que se dá com a planta, quando sopra o vento. Mas
que abençoe a força e cumpra as leis sempre, sempre, sempre, é violar a
liberdade primitiva, a liberdade do velho Adão.
Ia assim
cogitando o conselheiro Aires.
Não lhe atribuam todas essas ideias.
Pensava assim, como se falasse alto, à mesa ou na sala de alguém. Era um
processo de crítica mansa e delicada, tão convencida em aparência, que algum
ouvinte, à cata de idéias, acabava por lhe apanhar uma ou duas... ia a descer
pela Rua Sete de Setembro, quando a lembrança da vozeria trouxe a de outra,
maior e mais remota.
Esaú e Jacó – Machado
de Assis
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