Em janeiro de 1946, Fernando Borba
publicava, no “Correio do Povo”, as
linhas que abaixo transcrevemos, de devoção àquela que foi “a mais ardorosa admiradora do cronista”.
Nessa emotiva página, o brilhante e
saudoso intelectual pedia à sua amada companheira que o esperasse. Apenas seis
meses após, Fernando Borba foi ter com ela...
Querida:
A minha alma vivia da luz
de teus olhos. Fechaste-os e minha alma se partiu irremediavelmente, atrozmente,
desgraçadamente. Mal assomou na exteriorização de teu sofrimento, desse
sofrimento terrível contra o qual tanto lutaste, contra o qual tanto lutamos, o
aviso de que o fim estava próximo, foi como se o mundo desabasse aos meus pés.
Não era o mundo. Era eu mesmo que me desmoronava. Era minha alma que se partia.
Fechei logo a janelinha de minha página, sempre batida de sol, porta-voz de
meus comentários para o meu público, às vezes amargos, às vezes tristes, às
vezes sorridentes. Fechei-me no túmulo de minha dor. A ti, fecharam-te no
túmulo de teu corpo. Alimenta toda gente o egoísmo de sua própria dor. A dor da
gente é sempre a maior. E é mesmo, porque só nós podemos aquilatá-la. Morreste
e levaste uma grande porção de mim mesmo, porque essa porção era parte integrante
de ti mesma. E porque era imprescindível que a levasses. Agora... agora não sei
mais o que será de mim. Depois que morreste – e como se parece com a eternidade
esse curto período de horas! – eu não conseguiria descrever mais nada se não
reiniciasse a minha atividade raramente interrompida, de comentarista diário,
me dirigindo a ti, agora que deixaste o canto de meu coração, para te
transportares para uma região qualquer do seu infinito. É no céu que estarás,
não tenho dúvida. Para conseguires esse lugar, te submeteste na terra as mais
terríveis provas de seleção. Foste uma criatura laureada em sofrimento. Agora ,
já não terei, a me estimular, aquele entusiasmo de criança que admitia um
trabalho de gênio na mais vulgar de minhas notas... Não terei a vivacidade de
tuas sugestões. Não mais terei a única pessoa a quem eu admitia corrigisse a
colocação de um pronome. Jamais sentirei a alegria de escrever, a não ser
aquela incomparável ventura que me sobrará de conversar contigo todos os dias. Minhas
notas serão doravante como se fossem uma prece. Já não poderei escrevê-las numa
folha branca, com o martelar dos tipos da máquina. Será numa folha de minha
alma, no papel couché de minha saudade, que farei tirar um exemplar diário para
ti. Antes, tu que foste a mais ardorosa admiradora do cronista, eras também a
primeira pessoa que o lias. Lias o original mal acabado de ser escrito e
recortavas depois com o carinho de jardineira da ternura, a nota publicada.
Minhas pobres notas, mal te foste, começam a esvoaçar pelo chão, como se fossem
folhas secas pisadas pelo destino. Pelo nosso destino... Foste minha
inspiradora, a minha força, o mês estímulo. Se não olhares para mim a cada
momento, rolarei, envolto no resto que me sobra, a me arranhar nos espinhos da
jornada, assim como rolam a se arranham as folhas secas do meu destino.
Escreverei para ti.
Darei ao livro no qual enfechar os retalhos diários, o teu nome. Inscreverei o
teu nome no túmulo de todas as renúncias. Rezarei por ti. Espera-me...
*****
Fernando Borba, Porto Alegre, 1893 - 1946.
Advogado, jornalista, cronista e poeta. Pseudônimo Hélio Campos. (Fonte: Pedro
Leite-Villas boas, Notas de Bibliografia Sul-Rio-Grandense, Autores. A
Nação-SEC, Porto Alegre, 1974).
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