segunda-feira, 30 de junho de 2014

Rumo ao Céu



Em janeiro de 1946, Fernando Borba publicava, no “Correio do Povo”, as linhas que abaixo transcrevemos, de devoção àquela que foi “a mais ardorosa admiradora do cronista”.

Nessa emotiva página, o brilhante e saudoso intelectual pedia à sua amada companheira que o esperasse. Apenas seis meses após, Fernando Borba foi ter com ela...

Querida:

A minha alma vivia da luz de teus olhos. Fechaste-os e minha alma se partiu irremediavelmente, atrozmente, desgraçadamente. Mal assomou na exteriorização de teu sofrimento, desse sofrimento terrível contra o qual tanto lutaste, contra o qual tanto lutamos, o aviso de que o fim estava próximo, foi como se o mundo desabasse aos meus pés. Não era o mundo. Era eu mesmo que me desmoronava. Era minha alma que se partia. Fechei logo a janelinha de minha página, sempre batida de sol, porta-voz de meus comentários para o meu público, às vezes amargos, às vezes tristes, às vezes sorridentes. Fechei-me no túmulo de minha dor. A ti, fecharam-te no túmulo de teu corpo. Alimenta toda gente o egoísmo de sua própria dor. A dor da gente é sempre a maior. E é mesmo, porque só nós podemos aquilatá-la. Morreste e levaste uma grande porção de mim mesmo, porque essa porção era parte integrante de ti mesma. E porque era imprescindível que a levasses. Agora... agora não sei mais o que será de mim. Depois que morreste – e como se parece com a eternidade esse curto período de horas! – eu não conseguiria descrever mais nada se não reiniciasse a minha atividade raramente interrompida, de comentarista diário, me dirigindo a ti, agora que deixaste o canto de meu coração, para te transportares para uma região qualquer do seu infinito. É no céu que estarás, não tenho dúvida. Para conseguires esse lugar, te submeteste na terra as mais terríveis provas de seleção. Foste uma criatura laureada em sofrimento. Agora, já não terei, a me estimular, aquele entusiasmo de criança que admitia um trabalho de gênio na mais vulgar de minhas notas... Não terei a vivacidade de tuas sugestões. Não mais terei a única pessoa a quem eu admitia corrigisse a colocação de um pronome. Jamais sentirei a alegria de escrever, a não ser aquela incomparável ventura que me sobrará de conversar contigo todos os dias. Minhas notas serão doravante como se fossem uma prece. Já não poderei escrevê-las numa folha branca, com o martelar dos tipos da máquina. Será numa folha de minha alma, no papel couché de minha saudade, que farei tirar um exemplar diário para ti. Antes, tu que foste a mais ardorosa admiradora do cronista, eras também a primeira pessoa que o lias. Lias o original mal acabado de ser escrito e recortavas depois com o carinho de jardineira da ternura, a nota publicada. Minhas pobres notas, mal te foste, começam a esvoaçar pelo chão, como se fossem folhas secas pisadas pelo destino. Pelo nosso destino... Foste minha inspiradora, a minha força, o mês estímulo. Se não olhares para mim a cada momento, rolarei, envolto no resto que me sobra, a me arranhar nos espinhos da jornada, assim como rolam a se arranham as folhas secas do meu destino.

Escreverei para ti. Darei ao livro no qual enfechar os retalhos diários, o teu nome. Inscreverei o teu nome no túmulo de todas as renúncias. Rezarei por ti. Espera-me...

*****

Fernando Borba, Porto Alegre, 1893 - 1946. Advogado, jornalista, cronista e poeta. Pseudônimo Hélio Campos. (Fonte: Pedro Leite-Villas boas, Notas de Bibliografia Sul-Rio-Grandense, Autores. A Nação-SEC, Porto Alegre, 1974).




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