sexta-feira, 23 de maio de 2014

Um texto surreal, do ano de 1970


(Ano em que o bicho estava pegando no Brasil...)


Luís Fernando Veríssimo por Baptistão

Acima de tudo, jamais confundir um ronco na barriga com a voz de Deus.

Evitar pai e mãe.

Em caso de incêndio, se mandar.

Nunca perguntar por quem os sinos dobram. Lembra o belo tipo faceiro que você tinha ao seu lado? Matou-o um rim creosotado.

Morrer bonito. Ser digno do seu caixão.

Não fazer drama. Nem comédia. Pior que morrer de colapso é morrer de relapso.

Honrar a mulher do próximo como o seu gato. Embaixo da mesa todos os gestos são pagos. No escuro todos os gagos são pardais.

Não desejar.

Olhar os lírios do campo, que crescem e florescem sem incentivos fiscais. Tirar deduções, tomar nota e engolir o papel.

Manter, durante todo o espetáculo, uma atitude de cauteloso respeito. Ver em cada piada um enigma e uma provocação. Lembrar-se de que os palhaços são os donos do circo, mas o domador é quem manda. E o leão é bicha.

Não levantar falso testemunho. O último que tentou está no hospital com uma hérnia do tamanho de um juiz.

Jamais lamentar a sorte dos escravos ou humilhação dos teus inferiores, pois eles dobram por ti. E, mesmo, no escuro todos os pardos são gatos.

Não se furtar. Pior que a economia são os mil anos de perdão.

Não endeusar o nome do vão em Santos.

Desconfiar de quem diz ter a verdadeira ojeriza. A única verdadeira está no cofre do marajá de Pardo-Pardo, guardada por sete gatos escuros, com domingos e festas.

Se te pedirem as horas, dar o relógio.

Se te pedirem um pensamento, dar a cabeça.

Observar o protocolo e fazer todo o que ele faz. Um ferreiro visita a casa de um enforcado. “Corda” diz o ferreiro. “Um licorzinho” oferece o enforcado, e vai lá dentro. Volta com um espeto de ferro e o crava no peito da visita. Antes de morrer, o ferreiro estrebucha: “Na minha casa, isto não aconteceria!” Moral: Ter muito cuidado.

Se pedirem tua opinião, correr. Já é uma definição.

Amar ao teu gato sobre todas as casas.

No escuro, a mulher do próximo mia como todas. O amor não mata, mas deforma.

Jamais desejar a mulher do Job, que é bisbilhoteira e insossa,

Jamais dizer o nome do Ivã, meu Deus. Todo nome é uma sigla.

Tomar duas drágeas de hora em hora com um copo de vinho. Se os sintomas persistirem, tomar só o vinho.

Nunca, nunca fazer perguntas. Mas ter sempre uma mentira no bolso, junto com o canivete e o Pepsamar. Todo otimista é mal informado.

Não pecar contra a castidade, a não ser em autodefesa.

Matar sempre com paixão. Pior que o castigo é a frustração.

Não invejar o escuro dos gatos, pois tudo é lustre e passageiro.

E no entanto, acreditar.


Oi-mencionável

Da série “Quem diria?”. Comecei a ter um espaço assinado no jornal em 1969, na chamada “época brava” da ditadura. Governo Médici, censura à imprensa... Tudo o que tem gente desfilando hoje para trazer de volta.

A gente vivia testando os limites do que podia ser dito. Não era raro escrever-se crônicas que, obviamente, não seriam publicadas, só para desabafar. Nestes casos, tinha-se sempre uma crônica de reserva, sobre a vida sexual dos anjos, para substituir a censurada. Apelava-se muito para metáforas, na esperança de que os leitores entendessem as referências veladas à repressão, o que quase nunca acontecia.

Alguns limites do permitido eram claros. Críticas ao governo ou a militares, nem pensar, por exemplo. Outros limites eram menos explícitos. Certa vez, proibiram uma crônica minha para o rádio porque comentava a Teoria de Darwin sobre a evolução das espécies, que, tantos anos depois da sua publicação, não teria mais nada de subversiva. Nunca entendi. Talvez a teoria da evolução lembrasse macacos, macacos lembrassem gorilas, e gorilas lembrassem, metaforicamente, generais. Enfim, os tempos eram assim.

O que, definitivamente, não podia era mencionar certos nomes. Dom Hélder Câmara, jamais. E mais grave ainda: Brizola. Se pudesse, a ditadura não só proibiria que se pronunciasse o nome Brizola em todo o território nacional, como invadiria o cartório em que seu nascimento foi registrado e queimaria tudo, apagando qualquer traço da sua existência. Ou mandaria exterminadores ao passado para eliminar sua ascendência por várias gerações. No fim, sua existência não pôde mais ser negada, e a ditadura permitiu sua volta ao Brasil e à sua carreira. E o perigoso agitador, a alternativa armada e voluntariosa à moderação do Jango, o fantasma que assombrou os generais durante tanto tempo, o i-mencionável Brizola, ainda teve uma respeitável sobrevida política.

Há dias o nome de Brizola foi incluído, quem diria, no Livro dos Heróis da Pátria, no Panteão da Pátria e da Liberdade. Brizola finalmente mencionado, com honras.

Luis Fernando Veríssimo


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