sexta-feira, 23 de maio de 2014

Donas dos versos dos trovadores



Por Felipe Cândido

Ao longo da história da música brasileira, grandes mulheres inspiraram compositores em suas criações e tiveram seus nomes imortalizados em canções que se tornaram clássicos.

Atrizes, cantoras, domésticas, mães de santo, ou apenas uma garota passeando pela rua, todas puderam garantir seu espaço no mitológico reino das musas. Canções em homenagem a mulheres criaram verdadeiras inspirações em nosso cancioneiro. Relembre algumas dessas inspirações da música brasileira e conheça as histórias por trás das letras.

Ai que saudades da AméliaÞ Durante anos, a cantora Aracy de Almeida teve uma empregada doméstica, que para ela era um presente de Deus. A cantora vivia exaltando aos quatro cantos todos os dotes domésticos e, principalmente, os culinários de sua fiel escudeira. De tanto que Aracy falava dela, Amélia dos Santos Ferreira acabou chamando a atenção dos compositores Ataulfo Alves e Mário Lago, que eternizaram a musa em uma canção.

Nunca vi fazer tanta exigência,
Nem fazer o que você me faz.
Você não sabe o que é consciência,
Não vê que eu sou um pobre rapaz.

Você só pensa em luxo e riqueza,
Tudo o que você vê, você quer.
Ai, meu Deus, que saudade da Amélia,
Aquilo sim que era mulher.

Às vezes passava fome ao meu lado
E achava bonito não ter o que comer.
E quando me via contrariado dizia:
- Meu filho, o que se há de fazer?
Amélia não tinha a menor vaidade,
Amélia que era a mulher de verdade.

Carolina, Carol, Carolina bela” “Que Maravilha”, “CarolinaÞ Segundo a lenda que existe por aí, a canção Carolina, Carol, Carolina Bela foi composta pelo Jorge Bem Jor em homenagem à artista plástica Carolina Whitaker, mãe da cantora Céu, e uma das mulheres mais bonitas de sua geração. Jorge Bem também homenageou Carol Whitaker com a música Que Maravilha, esta em parceria com Toquinho, que foi namorado de Carol. Além disso, também existem rumores de que outra Carolina, aquela dos olhos fundos, do Chico Buarque, também seja ela. Essa Carol, hein?

AngélicaÞ A história da estilista Zuzu Angel é um símbolo da luta contra a ditadura militar no Brasil. Ela foi uma das grandes vítimas desse período. Zuzu era mãe de um jovem que queria mudar o país: Stuart Angel Jones. Como muitos de seus companheiros, Stuart acabou sendo preso e torturado. Zuzu passou a peregrinar pelos poderes militares à procura de notícias de seu menino. O compositor Chico Buarque, amigo e confidente da estilista, dedicou a ela uma canção, Angélica, na qual uma mãe busca incansavelmente seu filho, que “dorme na escuridão do mar”, assim como Stuart, que, após não resistir às torturas sofridas, teve seu corpo lançado ao oceano.

Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho?
“Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar.”
Quem é essa mulher
Que canta sempre esse lamento?
“Só queria lembrar o tormento
Que fez meu filho suspirar.”
Quem é essa mulher
Que canta sempre o mesmo arranjo?
“Só queria agasalhar meu anjo
E deixar seu corpo descansar
.”
Quem é essa mulher
Que canta como dobra um sino?
“Queria cantar por meu menino
Que ele já não pode mais cantar.”


LígiaÞ Tom Jobim e Clarice Lispector eram grandes amigos. Certa noite, o maestro chegou à casa da escritora, acompanhado de duas belas jovens, entre elas Lygia Marina de Moraes, que viria a ser a esposa do também escritor Fernando Sabino. Nessa noite, Clarice fez um pedido ao maestro que ele seguisse o exemplo de seu amigo e parceiro Vinicius de Moraes, que havia feito um poema em homenagem a ela, e ele também escrevesse algo. Mais que isso, Tom prometeu a Clarice que faria uma canção para homenageá-la. Para a surpresa (e também decepção e ira) da escritora, minutos depois Tom aparecia com os rascunhos de uma canção, mas não em homenagem a ela, e sim à Lygia, que o acompanhava naquela noite, A canção ganhou o mesmo nome de sua musa, seria eternizada mais tarde na voz de Chico Buarque.

Eu nunca sonhei com você,
Nunca fui ao cinema,
Não gosto de samba,
Não vou a Ipanema,
Não gosto de chuva,
Nem gosto de sol.
E quando eu lhe telefonei,
Desliguei, foi engano.
O seu nome eu não sei.
Esqueci no piano
As bobagens de amor
Que eu iria dizer,
Não, Ligia, Ligia...

Eu nunca quis tê-la ao meu lado
Num fim de semana,
Um chope gelado
Em Copacabana,
Andar pela praia até o Leblon.
E quando eu me apaixonei.
Não passou de ilusão.
O seu nome rasguei,
Fiz um samba-canção
Das mentiras de amor
Que aprendi com você,
Ligia, Ligia...

E quando você me envolver
Nos seus braços serenos.
Eu vou me render,
Mas seus olhos morenos
Me metem mais medo
Que um raio de sol,
Ligia, Ligia...


DoraÞ Durante uma viagem a Recife no carnaval, Dorival Caymmi, sem encontra onde se hospedar, ele se instalou em um bar, quando o cordão carnavalesco Pão da Tarde invadiu as ruas, com seu frevo envenenado. Dentre a multidão de foliões, uma bela mulher se destacou. Com requebros divinais, a jovem dançarina de frevo encantou o compositor. Dali, Caymmi sairia com os primeiros esboços da canção Dora, em que ele revela a todo mundo os encantos daquela “rainha do frevo e maracatu”.

Dora, rainha do frevo e do maracatu.
Dora, rainha cafuza de um maracatu.
Te conheci no Recife,
Dos rios cortados de pontes,
Dos bairros, das fontes coloniais.
Dora, chamei
Ó Dora!... Ó Dora!...
Eu vim à cidade
Pra ver você passar,
Ó Dora...
Agora no meu pensamento eu te vejo requebrando
Pra cá, ora prá lá
Meu bem!...
Os clarins da banda militar tocam para anunciar
Sua Dora, agora vai passar.
Venham ver o que é bom
Ó Dora, rainha do frevo e do maracatu
Ninguém requebra, nem dança, melhor que tu!


MineiraÞ Clara Nunes foi uma cantora de grande popularidade no Brasil. Esse reconhecimento não acontecia somente entre o público, mas também entre os compositores. Clara foi homenageada em diversas canções, em especial por seu marido, Paulo César Pinheiro. Ao lado do parceiro João Nogueira, ele imortalizou Clara na canção Mineira, em que suas características, seu canto e sua fé eram exaltados.


Clara,
Abre o pano do passado,
Tira a preta do cerrado,
Põe Rei Congo no Gongá.
Anda,
Canta o samba verdadeiro,
Faz o que mandou o mineiro,
Ô mineira.
Samba-que-samba no bole-que-bole
Oi, morena do balaio mole,
Oi, se embala no som dos tantãs.
Quebra no balacoxê do cavaco.
Oi, rebola no balacobaco.
Oi, se embola nos balangandãs.
Mexe no meio que eu sambo do lado.
Oi, bem naquele bamboleado.
Oi, de que eu também sou bambambã.
Ai, cai no samba cai.
Que o samba vai.
Até de manhã.
Oi, sarava, mineira guerreira,
Que é filha de Ogum com Iansã.


GuerreiraÞ Após, como presente para a cantora, a dupla de compositores fez uma canção para que ela interpretasse. Os versos iniciais da música Guerreira soam com uma resposta à Mineira na voz de Clara. Após o falecimento da cantora em 1983, Paulo e João se reuniram novamente para uma despedida da cantora. Dessa vez a composição em forma de samba-exaltação, e relembrava a trajetória de Clara: Um Ser de Luz.

Se vocês querem saber quem eu sou?
Eu sou a tal mineira,
Filha de Angola, de Ketu e Nagô,
Não sou de brincadeira.
Canto pelos sete cantos,
Não temo quebrantos
Porque eu sou guerreira.
Dentro do samba eu nasci,
Me criei, me converti
E ninguém vai tombar a minha bandeira.
Bole com samba que eu caio e balanço o balaio no som dos tantãs
Rebolo, que deito e que rolo,
Me embalo e me embolo nos balangandãs
Bambeia de lá que eu bambeio nesse bamboleio
Que eu sou bam-bam-bam
E o samba não tem cambalacho,
Vai de cima embaixo pra quem é seu fã
Eu sambo pela noite inteira,
Até amanhã de manhã
Sou a mineira guerreira, Filha de Ogum com Iansã

Mais Musas...

Muitas outras grandes mulheres gravaram seus nomes na música popular brasileira pelas homenagens que receberam.

Coqueiro verde – Erasmo Carlos, para sua esposa Nara (Narinha).

Morena dos olhos d´água – Chico Buarque para Eleonora Mendes Caldeira.

Rita Lee – Gilberto Gil, para a cantora e compositora.

Madalena – Ivan Lins, para sua ex-esposa Vera Regina.

Irene, ri e Nicinha – Caetano Veloso, para suas irmãs.

Iolanda – Pablo Milanés e versão em português de Chico Buarque, para a cubana Yolanda, esposa de Pablo.

Vera Gata – Caetano Veloso, em homenagem à atriz Vera Zimmerman.

Ive Brussel – Jorge Benjor, para uma paixão belga que o compositor teve.

Januária – Chico Buarque, em homenagem a quadro que o compositor ganhou do pintor Di Cavalcanti.

Branquinha – Caetano Veloso, para a produtora (e ex-mulher) Paula Lavigne.

Maysa – Ronaldo Bôscoli, para a cantora Maysa.

Cristina – Tim Maia, para a cozinheira da atriz Maria Gladys.

O que é o amor? – Arlindo Cruz, para sua esposa, a porta-bandeira Babi Cruz.

Papel Maché – João Bosco e Capinan, para a esposa de João, Ângela Bosco, pintora.

Muito prazer Zezé – Rita Lee e Roberto de Carvalho para a atriz Zezé Mota.

Lady Laura – Roberto Carlos em homenagem a sua mãe, Laura.

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