Carlos Drummond de
Andrade
Antigamente, os pirralhos dobravam a língua diante dos pais, e se
um se esquecia de arear os dentes antes de cair nos braços de Morfeu, era capaz
de entrar no couro. Não devia também se esquecer de lavar os pés, sem tugir nem
mugir. Nada de bater na cacunda do padrinho, nem de debicar os mais velhos,
pois levava tunda. Ainda cedinho, aguava as plantas, ia ao corte e logo voltava
aos penates. Não ficava mangando na rua nem escapulia do mestre, mesmo que não
entendesse patavina da instrução moral e cívica. O verdadeiro smart calçava
botina de botões para comparecer todo liró ao copo-d’água, se bem que no
convescote apenas lambiscasse, para evitar flatos. Os bilontras é que eram um
precipício, jogando com pau de dois bicos, pelo que carecia muita cautela e
caldo de galinha. O melhor era pôr as barbas de molho diante de treteiro de
topete: depois de fintar e engambelar os coiós, e antes que se pusesse tudo em
pratos limpos, ele abria o arco. O diacho eram os filhos da Candinha: quem
somava a candongas acabava na rua da amargura, lá encontrando, encafifada,
muita gente na embira, que não tinha nem para matar o bicho; por exemplo, o
mão-de-defunto.
Bom
era ter as costas quentes, dar as cartas com a faca e o queijo na mão;
melhor ainda, ter uma caixinha de pós de perlimpimpim, pois isso evitava de
levar a lata, ficar na pindaíba ou espichar a canela antes que Deus fosse
servido. Qualquer um acabava enjerizado se lhe chegavam a urtiga no nariz, ou
se o faziam de gato-sapato. Mas que regalo, receber de graça, no dia-de-reis,
um capado! Ganhar vidro de cheiro marca barbante, isso não: a mocinha dava o
cavaco. Às vezes, sem tirte nem guarte, aparecia o doutor pomada, todo cheio de
nove horas; ia-se ver, debaixo de tanta farofa era um doutor da mula ruça, um
pé-rapado, que espiga! E a moçoila, que começava a nutrir xodó por ele, que
estava mesmo de rabicho, caía das nuvens. Quem queria lá fazer papel pança? Daí
se perder as estribeiras por uma tutameia, um alcaide que o caixeiro nos
impingia, dando de pinga um cascão de goiabada.
Em
compensação, viver não era sangria desatada, e até o Chico vir de baixo
vosmecê podia provar uma abrideira que era o suco, ficando na chuva mesmo com
bom tempo. Não sendo pexote, e soltando arame, que vida supimpa a do degas!
Macacos me mordam se estou pregando peta. E os tipos que havia: o pau-para-toda-obra,
o vira-casaca (este cuspia no prato em que comera), o testa-de-ferro, o
sabe-com-quem-está-falando, o sangue-de-barata, o Dr. Fiado que morreu ontem, o
zé-povinho, o biltre, o peralvilho, o salta-pocinhas, o alferes, a polaca, o
passador de nota falsa, o mequetrefe, o safardana, o maria-vai-com-as-outras...
Depois de mil peripécias, assim ou assado, todo mundo acabava mesmo batendo com
o rabo na cerca, ou, simplesmente, a bota, sem saber como descalçá-la.
Mas até aí morreu Neves, e não foi no Dia de São Nunca de Tarde: foi vítima de pertinaz enfermidade que zombou de todos os recursos da ciência, e acreditam que a família nem sequer botou fumo no chapéu?
*****
Esse texto, publicado em Poesia e prosa (Rio de Janeiro, Nova Aguilar,
1983, p. 1320-1321), mostra que muitos termos e expressões, corriqueiros num
determinado período, deixam de ser usados e tornam-se incompreensíveis em
outro.
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